06/08/2007

Diálogo desencontrado

O homem entra na livraria, o atendente vai até ele e pergunta:

- Boa tarde, senhor, posso ajudá-lo?
- Olá, sim, eu estou procurando um livro...
- Pois não, qual é o título da obra?
- Hummmm... não sei...
- O senhor sabe o nome do autor?
- Hummmm... não...
- E a editora?
- Eu me esqueci! É um livro que conta a história de um dinossauro..
- É um livro para crianças, senhor?
- Não, não... é a história de um dinossauro assassino e...
- Ah, sim, então é um romance policial?
- Não sei, não tem nenhum policial na história...
- Deve ser um suspense, então?
- Não sei, é a história de um dinossauro que mata o John Kennedy...
- Um dinossauro que mata John Kennedy?
- Sim... um dinossauro
- Um dinossauro que atira no John Kennedy?
- Não, ele não mata John Kennedy com um tiro, é com um golpe de caratê!
- Ué, mas John Kennedy não foi morto com um tiro?
- Não, não... na história ele é morto com um golpe de caratê...
- Mas todos sabem que ele foi morto com um tiro!
- Não, não... esse aí que morreu com um tiro não era o John Kennedy de verdade, era um sósia que o serviço secreto sempre mandava para eventos em que o presidente corria riscos.
- Ah, e onde o John Kennedy legítimo foi morto com um golpe de um dinossauro carateca?
- Não sei, eu ainda não li esse livro. Onde eu encontro?
- Ainda não sei como ajudá-lo, senhor. Talvez este livro esteja na seção “suspense”...
- Ah, mas não é um suspense, é meio uma intriga política... mais ou menos...
- Intriga política? O dinossauro era um assassino contratado por adversários políticos?
- Não, não.. ele era um dos senadores que tinha muita inveja do John Kennedy...
- O dinossauro era um senador?
- Sim, mas ele seria candidato a presidente na próxima eleição...
- E por que não foi?
- Não sei, eu ainda não li o livro...
- Entendi. Vou perguntar para o pessoal mais experiente. Então é a história de um dinossauro que mata John Kennedy porque quer ser presidente...
- Não! Ele mata o John Kennedy porque o John Kennedy estava saindo com uma pessoa que o senador amava muito...
- Ah! Marilyn Monroe?
- Não! Sabe aquela carinha da Aveia Quaker?
- Sei... mas ouvi dizer que aquilo é um homem..
- É mesmo...
- O John Kennedy era homossexual?
- Não, o dinossauro era homossexual, o John Kennedy não!
- Então porque o John Kennedy estava saindo com o cara da Aveia Quaker?
- Porque o John Kennedy tinha interesse na filha dele.
- E quem era a filha do cara da Aveia Quaker?
- Não sei. Não li o livro...
- E a Marylin Monroe?
- Que que tem a Marylin Monroe?
- Ela não era amante de John Kennedy?
- Sim, era.
- E ela não está na história?
- Sim. Ela está. Ela fazia aulas de caratê com o dinossauro.
- Que faixa ela tinha?
- Não sei, não li o livro.
- E ela está envolvida no assassinato do John Kennedy?
- Não sei...
- ...você não leu o livro, né?
- Isso! Em que seção eu encontro?
- Não sei. Ainda não sei que livro é esse...
- É um livro que conta a história de um dinossauro...
- ...um dinossauro assassino que mata o John Kennedy com um golpe de caratê... eu já sei, senhor, mas não sei de que livro se trata... vou perguntar ao meu gerente.
- Muito obrigado!

Minutos depois o atendente retorna:

- Sinto muito senhor, falei com o gerente e com todo o pessoal, ninguém sabe de que livro se trata.
- Ah, não preciso mais! Minha esposa me ligou e disse que já encontrou o livro em outra livraria e já entregou para minha sobrinha.
- O senhor não me disse que era para sua sobrinha. Quantos anos ela tem?
- Nove.
- Mas o senhor não disse que o livro não era infantil?
- Sim, que que tem?
- Mas o livro não conta a história de um dinossauro homossexual assassino que mata o John Kennedy com um golpe de caratê por causa do cara da Aveia Quaker?
- Ah, sim... minha sobrinha adora dinossauros!

03/08/2007

A cólera súbita do Senhor Alencar

Naquele dia ele havia prometido a si mesmo que mataria sua esposa. Nunca antes havia cogitado cometer tal ato, ocorreu-lhe subitamente, durante seu intervalo para almoço, quando passou em frente a uma pequena galeria de artes. Na vitrine estava em exposição uma escultura africana que ele gostou muito, mas sabia que sua mulher o faria devolver, caso ele comprasse, ou deixaria em algum canto esquecido da casa, como fizera antes com um quadro pintado por crianças deficientes que hoje faz parte da decoração da garagem. Essas idéias malucas irritavam profundamente sua esposa, mais de uma vez o marido havia sido repreendido em público pela mulher e umas tantas outras privadamente quando ele manifestava seus desejos de tornar a decoração da casa mais exótica. A mulher, apesar de calma, paciente e compreensiva, detestava extravagâncias ou objetos esdrúxulos, opinião que sempre fazia questão de exprimir para seu marido quando visitava lugares e casa de amigos que se desviavam de uma ideal de pureza ambiental que ela havia desenvolvido ao longo da vida e do qual sentia muito orgulho.

Ele ficou algum tempo olhando a escultura, mas seus olhos já estavam cegos, via tão somente o processo de morte da sua mulher. Havia se dado conta de um controle sobre si que nunca percebeu e apreciou muito sua genialidade de ter tido a idéia do assassinato. Apesar das repreensões, que o marido considerava saudáveis e por isso as acatava sem protestos, eles nunca haviam discutido de modo severo e nenhum dos dois chegou a sentir ódio um do outro, com exceção da vez que ela julgou ter visto seu marido abraçado com uma mulher num restaurante, mas era um outro sujeito muito parecido com seu parceiro, fato que descobria mais tarde, ao observar melhor, de forma que isso não conta. Quanto mais ele ficava ali olhando a vitrine, mas a idéia do assassinato se tornava palpável, como acontece com um cientista na iminência de uma descoberta. Ele sentiu ódio, muito ódio. O ódio sentido pela primeira vez por uma pessoa é fulminante com uma paixão incontrolável. Sentia um gosto amargo horrível na boca ao descobrir que estava imensamente arrependido de ter casado com aquela mulher. Com o olhar perdido em cenas macabras de morte, rangia os dentes e fazia movimentos com a boca que estado nenhum havia lhe provocado antes. Ficou atônito, amaldiçoou sua mulher como o padre lhe ensinara a fazer com o diabo na sua infância, quando foi coroinha da paróquia do bairro onde morava. A certa altura de seus pensamentos doentios, ele olhou quase com sobressalto em seu redor para espiar se alguém lhe observava, como quem receia que os pensamentos possam ser ouvidos pelas outras pessoas. Ninguém o observava, como era de se esperar, ele, no entanto, agiu disfarçadamente para tentar ocultar seu estado de perplexidade e, em seguida, saiu caminhando contando a distância entre os passos e controlando seu ritmo para que tivesse certeza de que estava se comportando normalmente. Mas ele não conseguiu, e começou a olhar desconfiado para os transeuntes, que sequer notavam o sujeito transtornado.

Quando chegou à portaria do prédio onde trabalhava, já havia estabelecido um pouco do muito controle que havia perdido. Assim, ele passou sem ser notado pelos porteiros, como sempre. Enquanto aguardava o elevador no hall de entrada, a imagem de sua esposa veio novamente à sua cabeça, fazendo-o sentir uma mescla de prazer e repulsa. Chegou a sentir uma pequena pontada na consciência, mas logo a esqueceu quando a porta do elevador se abriu. Entrou, havia uma mulher lá dentro que certamente vinha do sub-solo. Normalmente ele cumprimentaria com um boa tarde desinteressado, mas dessa vez esqueceu, o que não chegou a fazer tanta diferença na vida do ser com quem compartilhava o pequeno espaço do elevador. Nesse meio tempo a idéia do assassinato foi momentaneamente esquecida para dar lugar à inquietação do transtorno que lhe afligia. Com os olhos inquietos que miravam a cada segundo um diferente centímetro quadrado da realidade fitou o dedo anular da mão esquerda da moça, foi quando ele parou de procurar aquilo que não sabia estar procurando. havia uma lustrosa aliança dourada no dedo da moça. Então, ele ergueu o braço esquerdo até a altura dos olhos e observou sua própria aliança, já um pouco mais calmo, mas ainda atônito, e depois fitou um infinito que a moça não conseguia enxergar. Seus pensamentos se perderam em imagens que remetiam ao seu casamento e ao de seus amigos. Sentiu cheiro de bolo, de vinho, de champagne, de maquiagem de noiva, de igreja... Lembrou da música que tocavam no dia de seu matrimônio e da marcha nupcial. Seus olhos se perderam ainda mais e ele se esqueceu de baixar a mão ou ao menos de colocá-la em movimento para disfarçar. A moça o olhou de relance, mais interessada do que assustada, mas seu interesse durou até que o elevador parou e as portas se abriram no andar que ela havia escolhido. Foi então que o sujeito abandonou a viagem em que se metera e olhou para o painel do elevador, notou que não havia apertado o botão correspondente ao andar em que trabalhava. Assim, o elevador seguiu sua descida em direção ao térreo, já sem sua companheira efêmera de viagem. Quando o elevador parou novamente e suas portas se abriram, ele, que tentava entender o que estava acontecendo consigo, tentou também esboçar um sorriso para não desagradar às pessoas que entravam. Tudo se passou como se nada estivesse acontecendo durante a subida até o décimo quarto andar, onde ele trabalhava, que ali parou porque alguém se encarregou de apertar o botão correspondente, pois ele havia se esquecido de novo.

Ele saiu e foi em direção ao banheiro do escritório. Seu transtorno estava ficando cada vez mais difícil de se disfarçar, mas impossível de ser percebida pelo outros. Cruzou com duas ou três pessoas que lhe conheciam e sua sensação era de que elas observavam a nudez de sua alma. Entrou no banheiro, foi até o lavatório e molhou o rosto que havia congelado uma expressão que ele mesmo não reconheceu quando se olhou no espelho. Nesse instante ele cessou todos os movimentos bruscos que fazia até ali e permaneceu estático observando seus pensamentos no reflexo de seus olhos. Quando ouviu o barulho da porta se abrindo, preciptou-se para o interior de um dos sanitários que estava desocupado, fechou o trinco, abaixou a tampa do vaso e sentou-se apoiando a cabeça nas mãos com os dedos entre os cabelos, que eriçaram. Fechou os olhos e durante um bom tempo ficou amargando as imagens que lhe ocorriam. Após alguns minutos, pegou no sono. Nunca havia adormecido tão facilmente, com exceção das raras vezes que se embebedara, era como se os seus problemas de insônia houvessem sido curados de repente.
Depois de um tempo cochilando, ele despertou exasperado, com os olhos arregalados, ele se levantou do vaso suando com o calor que fazia dentro do banheiro pela falta de ventilação adequada e dentro da sua alma pela perturbação. Ofegante, voltou a sentar-se no vaso sanitário, dobrou-se e simulou contrações de quem está para vomitar, esperando que o ato de regurgitar pudesse curar seu estado assim como se cura uma embriaguez. Não vomitou, entretanto, recompôs-se precariamente e ficou recordando, estático, o breve sonho que tivera. Sonhou que era fim de tarde e estava chegando em sua casa. Abriu a porta, encontrou o ambiente escuro. Andou por todos os cômodos da casa acendendo as luzes e procurando sua esposa. Chamava incessantemente pelo nome dela. Foi encontrá-la na lavanderia, morta, com um aspecto hediondo.

Ficou perplexo ao recordar, não só pela péssima sensação de olhar para o corpo sem vida de sua mulher, mas também pela sensação intuitiva de que o sonho representaria muito mais do que o produto de pensamentos obsessivos. Julgava que aquilo poderia significar um presságio ou algo assim. Estava com cara de bobo de um menino que não entende as lições de matemática sente-se mal. Agora estava dividido. Se a morte da sua mulher era certa, como revelara seu sonho, isso significaria que seus planos seriam bem sucedidos? Pôs a si mesmo essa questão e algo o perturbou ainda mais nesse momento. Se a morte da mulher era certa e fosse também certo que ele seria o causador da morte, isso significaria que, por antecipação, ele seria um assassino. Esse pensamento fez gelar sua espinha. Também por antecipação ele sentiu arrependimento por ter matado, o que significa que sua coragem impulsionada pela perturbação o abandonou nesse momento. Não sentiu mais o ímpeto de levar seus planos adiante.

Não se sabe bem como se dá a sucessão de eventos na dinâmica do universo. Se ela tem uma ordem definida ou se seu traçado é outorgado previamente, sem que se tenha controle dos eventos, ou, ainda, se ela acontece de forma caótica e inesperada, isso é algo que repousa na escuridão do nosso desconhecimento e, portanto, nossas escassas faculdades mentais não podem precisar. Assim sendo, vejamos, então, o que se passa dentro do banheiro onde está esse sujeito transtornado cozinhando pensamentos. Neste instante, e em momentos anteriores, os eventos do universo se sucederam de forma a causar uma resultante específica. Esses eventos poderiam se combinar de tal forma que, agora, seu celular tocaria. Poderia ser algo importante ou não. Ele poderia deixá-lo cair ou não dentro do vaso. Caso atendesse, poderia ser do hospital, onde sua mulher poderia estar morta ou apenas sofrendo de um mal-estar comum a uma hipertensa. Também estar na unidade de tratamento intensivo, onde os médicos estariam tentando salvar a vida da qual ela mesma havia tentando se privar, envenenando-se por já estar cansada de como a dinâmica de sucessão dos eventos no universo se comportava e a tornava profundamente triste com seu casamento. Mas o celular poderia não tocar ou não estar com ele. Ele poderia tentar seguir sua rotina normalmente. O desejo do assassinato poderia voltar a lhe ocorrer ou não. Ele poderia voltar a fazer ou não planos para matar sua esposa. Se ele fosse para, voltando de um lugar qualquer conforme seus impulsos ou conforme seus planos, poderia encontrar ou não sua mulher. Se encontrasse, poderia dar cabo dela de diversas formas, planejadas ou não, ou poderia se arrepender no último minuto. Se o universo lhe reservasse uma grande fortuna, ele poderia encontrar ou não em sua casa a escultura africana que sua mulher poderia ter comprado, então ele seria imensamente feliz. Mas poderia ser imensamente triste, caso descobrisse a escultura somente após matar sua mulher. Ou pior, poderia chegar em casa, esgueirar-se pela escuridão da casa, pegar o primeiro objeto pesado que encontrasse na sala e matar sua esposa, que poderia ou não estar de costas, para depois descobrir que havia cometido o assassinato com a própria escultura.

Mas nada disso aconteceu. O universo estava ocupado com eventos mais importantes despejando fortuna e infortúnios em outros lugares. Seu celular, que estava com ele, não tocou. Ele não voltou a cogitar a hipótese do assassinato. Saiu do sanitário, lavou e enxugou o rosto. Voltou a trabalhar estranhamente tranqüilo, como quem vê a desgraça passar perto mas que já vai longe e não se efetiva. Após o expediente foi tomar um trago em um lugar qualquer que não importa onde. Chegou um pouco mais tarde em casa. Sua mulher estava na cozinha, ele foi até lá e a cumprimentou como de costume, com um beijo desinteressado de quem já é casado há muito tempo. Ele puxou umas das cadeiras e sentou-se. Ficou observando sua mulher, que estava de costas, virada para o fogão onde cozinhava algo para o jantar que, coincidentemente, também estava atrasado. Observou-a com o olhar e a expressão do soldado que volta de uma guerra longa e sangrenta. Sentiu desejos estranhos, desejou sua mulher de uma forma diferente, mas, sobretudo, sentiu medo... medo de viver e morrer só.