06/08/2009

Um quase-poema de despedida

É chegada a hora desse vira-lata aqui caçar outro rumo para além dessa cidade. Nem parto, nem morte, a jornada que se inicia é só um passo na dobra da esquina. Ia-se para um lado, agora se vai para outro... não é tanto uma mudança, talvez a escolha de um caminho que pareça torto, mas vem do entendimento de que o outro lado que se escolheu vai ser parte do lado que foi deixado. E assim sigo. Para aqueles que ficam, gostaria de dar um poema de despedida, mas um vira-lata que não é poeta, não pode fazer poesia. Não que ser vira-lata é o essencial do que sou, e poeta o essencial do que quero ser. Mas à parte dessa natureza que determina as coisas facilmente perceptíveis, sou algo que não importa definir, sou algo para além de mim, de que não posso falar porque ainda não conheci. Então, mais importante do que sou, é com o que quero me fundir para deixar de ser o que minha condição costuma dizer que sou. E nesse limiar, um vira-lata que vai deixando de ser vira-lata, mas que certamente poeta não é, diz assim...
O poeta que não é poeta
se põe a pensar na vida
atrás da palavra certa
para a hora da despedida
Ele revira seus sentimentos
e aqueles que são são seus
em busca dos ornamentos
que vão enfeitar seu adeus
Mas como sua boca é seca
e como a palava lhe falta
prefere que a boca emudeça
para poder falar da alma
Se não há palavra certa
o poema não se sustenta
e o poeta que não é poeta
faz um poema que não é poema
O que vai dizer o aperto de um abraço
na mesma medida e maneira
nunca vi usar só aço
para fazer casa de madeira
O poeta se silencia
deixa seu miolo escondido
para não fazer da poesia
um profundo mal-entendido
Assim ele se despede
poeta que não é poeta não
que desistiu do poema que não mede
o imensurável do coração
E se acaso o poeta chora
esse poeta que não sou eu
cada pingo é uma palavra
que ele nunca escreveu...
....
se acaso o poeta chora
depois de tudo que falou
cada pingo é uma não-palavra
que talvez seja o próprio amor

28/07/2009

Momento auto-ajuda

Um vira-lata pode aprender muitas coisas. Aprendendo muitas coisas consigo descobrir para o que sou apto e para o que sou inapto. Tornei-me inapto para muitos dos afazeres da cidade, isso é verdade. Mas sabendo para o que me tornei inapto, consigo imaginar as aptidões necessárias para quem quer assumir esses afazeres. Então, quando vejo esse monte de gente querendo se casar, penso no que eles deveriam estar fazendo para poderem ser bons maridos e esposas. Percebo que tem sido tempos difíceis para algumas das mulheres que buscam um companheiro. Não que elas me revelem isso – elas não perderiam tempo se confessando a um vira-lata – é que isso é uma coisa que transparece até no andar de algumas mulheres. Entre os homens, são poucos que percebo desejarem o mesmo. É certo que muitos dos homens desejam se casar, mas eles não parecem estar com muita pressa, ao contrário das mulheres que, já chegando à casa dos trinta anos, parecem querer remediar a situação na última hora. Há também aquelas que já encontraram um parceiro, mas andam meio amuadas e receosas com o futuro de seus relacionamentos. Se um dia uma dessas mulheres viesse me pedir conselhos, coisa que, obviamente nunca vai acontecer, eu diria assim:


Pequenos conselhos para as mulheres que desejam se tornar esposas


Não sonhe com os homens, qualquer um pode notar a ansiedade daquela que espera por um esposo, e muitos homens sabem tirar proveito dessa ansiedade. Busque a auto-realização, então se acaso um esposo aparecer, ele somará a sua vida, ao invés de ser apenas o recheio de uma lacuna.


Fique bonita, mas não tente esconder a todo custo suas imperfeições. Fazendo isso, além de revelar sua insegurança, atrairá a atenção justamente para o que você está tentando esconder. Lembre-se que a curiosidade é pelo desconhecido. Jamais tente equilibrar suas imperfeições apontando as imperfeições do outro, esse é um hábito das crianças mimadas. É claro que as mulheres muito bonitas têm mais opções de escolha. Mas ter variadas opções, ter diversos homens interessados em você, é um convite à soberba. Ser agraciada com uma beleza generosa é uma oportunidade para a superação dela própria. Use-a como um obstáculo a se transpor para ir além e descobrir coisas mais preciosas em seu interior. Se você confiar à beleza seu sucesso com os homens, em breve vai se ver rodeada de torturantes tratamentos estéticos que não têm fim; e quando sua beleza se for com o passar do tempo, você vai se ver obrigada a se submeter a deformantes cirurgias plásticas que a tornarão ridícula. Aprenda a valorizar as rugas. Só quem não evolui em sabedoria detesta as rugas. Mais importante que se achar bonita é, simplesmente, achar-se.


Frases como “com licença”, “me desculpa”, “por favor” e “obrigado” são mais importantes que “amo você”, “você está linda” ou “não vivo sem você”. Qualquer tolo é capaz de viver uma paixão, mas não é qualquer um que sabe viver com humildade e respeito. Virtudes como estas serão mais importantes que exaltações apaixonadas quando os anos pesarem sobre o casamento.


Um homem que tolera a mentira poderá viver uma mentira com você. Fique atenta, mas não faça testes tolos para saber se ele é sincero. A verdade aflora com a água da nascente de um rio: clara e silenciosa.


A paixão é um bom motivador para a união de casais, por outro lado, o fim da paixão é um bom motivador para a separação. Depender da paixão para se realizar implica, invariavelmente, numa troca incessante de parceiros. Para o matrimônio, o amor, que se constrói, é mais importante que a paixão, que se desvanece. Esqueça o passado do relacionamento dizendo “antes era melhor” ou “antes era mais intenso”, tudo que é fruto da paixão, por natureza, é efêmero. Busque a felicidade do relacionamento em uma construção fundada em sentimentos mais sutis, e não nos excessos da paixão que nunca mais vão voltar. Mantendo acesa a chama da paixão também se mantém a sombra do engano. Se sua busca é por um relacionamento sólido e duradouro, troque as coisas efêmeras pelas coisas perenes, troque a paixão pelo amor.


Aprenda a cozinhar, não como um lazer, mas como uma disciplina, como uma arte. Aprenda a ser responsável pelo o que vai estar na mesa do seu lar. O alimento é uma poderosa medicina que, muito provavelmente, vai estar em suas mãos, caso você se case. Assim também, aprenda os afazeres do lar. Muitos de sua geração se tornaram displicentes com os cuidados que devem ser dedicados ao lar. Não adianta recorrer a discursos feministas como “os homens precisam também assumir as tarefas de casa!”, sinceramente, na cidade, nem as mulheres estão aprendendo a fazer isso. Saber fazer dinheiro, saber economia e política, saber de pintura e música, conhecer “A crítica da razão pura” de Kant, nunca serão mais importantes do que saber se uma fruta está boa ou não para comer.


Acenda uma vela para Santo Antonio se você tem fé que isso vai ajudar . Uma biblioteca pode ser mais confiável do que as noitadas para se encontrar alguém. Uma oração é mais confiável que as duas juntas.


Aprenda a deleitar os ouvidos do outro, mas isso é bem diferente de ser tagarela. Aperceba-se de sua fala, de suas entonações, do momento e do ambiente. Aprender a usar a fala será importante para resolver os inevitáveis conflitos de um relacionamento. Mais importante que tudo isso, é entender a importância do silêncio.

As intenções e as expectativas atrapalham a comunicação com o outro, tente esquecê-las. Vá a lugares onde você não precisa ir armada para conquista, como uma feira internacional de gibis. Não fique matutando sobre um possível relacionamento futuro, se não, quando você encontrar um parceiro, ele já virá sobrecarregado com todas suas expectativas. O mesmo se aplica aos seus possíveis futuros filhos.


Lembre-se que você não veio ao mundo para satisfazer um homem, muito menos para satisfazer os outros mostrando a eles que você é capaz de satisfazer um homem. Aprenda a superar o desejo de se tornar uma esposa e a superar o medo de não se tornar uma esposa. Com disciplina se controla o alimento dos sonhos.


Eu vim ao mundo como vira-lata, essa é minha condição, mas não meu cárcere. Sua condição de mulher também não é um cárcere, você não está presa aos estereótipos e signos de identificação feminina. Transcenda! E a satisfação de sua condição de mulher se tornará algo secundário.

24/06/2009

Mais um propósito

Se eu escrevo um poema
Se sujo o papel com tinta
Não é porque sei da beleza
Ou saiba reproduzi-la

O poema é um entendimento
Que se mostrou impossível
O impossibilitamento
Que mostrou entendível

28/05/2009

Soneto para meus conselheiros

É bom ser cão para não ter que ouvir conselhos dos homens. É certo que levo um monte de chutes por aí, mas às vezes deve ser melhor receber um chute do que um conselho. Não porque os conselhos sejam ruins por si próprios, mas é que aqui na cidade o tema deles parece não mudar, parece o mesmo lenga-lenga de sempre, a mesma piririmprolopopéia-discafatice enfadonha. Deus me guarde dos conselhos! Deus me guarde das conversas pra boi enriquecer! Falo isso porque outro dia encontrei um jovem que tem sido confundido com uma lata de despejar verbos no imperativo e no futuro do pretérito. O pobre coitado tem sido alvejado por conselhos, melhor seria dizer pelo mesmo conselho repetidamente. Ontem , quando ele se sentou ao meu lado, um pouco abatido de tanta paulada palavreada, veio uma canção do dia e me sussurrou assim:

Os sonhos que costumava ter antes

Hoje eu já não os alimento mais

Em troca de agarrar os instantes

Que se vão como os barcos vão do cais


Se a grandeza é o tema inaugural

Dum sonho emancipado da madrugada

Então para ele deve haver um canal

Em cuja foz há uma vida frustrada


Realizar um sonho de ser e ter

É o que deveria buscar na minha idade

Com todas as forças de que disponho


Mas um algo insiste em me dizer:

O sonho não se torna realidade

Numa realidade feita de sonho


21/05/2009

Soneto da passagem

Esta cidade rançosa estraga-se
Com um azedume que não me desce
Dói saber que ainda estou aqui
Mas é como se não estivesse

Ela me dá o abrigo momentâneo
E o mal que o espírito me adoenta
É como se, sádica, espancasse-o
Com o mesmo gesto que o acalenta

Quero tomar um fôlego de vida
Sacar aquele bilhete só de ida
Entornar muito chá de sumiço

E, vendo as coisas neste estado,
Pergunto a Deus se não é pecado
Querer mais o colapso de tudo isso

27/04/2009

Tem um homem em cima da árvore!

- Tem um homem em cima da árvore!
- Quê!
- Um homem! Lá em cima, na árvore!
- Nossa, como ele conseguiu subir lá, é muito alto?!
- Sei lá! Eu só quero ver como ele vai descer.
- Só pode ser um ambientalista.
- É mesmo! Tá protestando!

Um jornalista que passa pelo local se dá conta de que pode estar diante de uma boa matéria. Então saca no bolso do paletó um caderno de notas, uma caneta e se põe a pensar num título para a matéria: “Ambientalista protesta subindo em topo de árvore no centro da cidade”. Enquanto isso, um pequeno aglomerado de gente vai se formando ao pé da árvore.

- Olha lá, ele tá se mexendo!
- Deve ser algum sinal de protesto.
- Não, ele só está coçando as costas.
- Coçando as costas?
- Não! Ele pode estar pedindo ajuda.
- É, deve ser um retardado. Ele deve estar com medo!
- E mesmo, olha lá, ele tem cara de louco mesmo, é melhor chamar os bombeiros.

O jornalista, então, repensa o título da matéria “Homem com problemas mentais sobe em árvore no centro da cidade”.

- Não dá nem pra ver a cara dele, como você tá falando que ele tem cara de louco?
- Sei lá, pra subir em árvores assim só pode ser louco!
- Louco nada, olha lá, ele tá ameaçando pular!
- Ai, meu Deus, ele vai se jogar!

Gritos! (principalmente das mulheres). O jornalista, eufórico com furo de reportagem, pensa em um novo título “Suicida se atira do topo de árvore no centro da cidade”. Uns urgem afoitos a chegada do corpo de bombeiros, outros pegam seus celulares e ligam para qualquer lugar que possa providenciar socorro para o homem, outros tentam gritar ao homem para dissuadi-lo do suicídio, já outros...

- Não, olha lá! Ele não vai se jogar, ele só estava coçando a bunda!
- Coçando a bunda?
- É, ó lá! Coçando a bunda.
- Á tá, é mesmo.

O jornalista se frustra, seu furo está ameaçado. “Homem coça a bunda no topo de árvore no centro da cidade” não seria um bom chamariz para os leitores do jornal. Esperançoso, ele então continua crendo se tratar de um suicida.

- Ele tá se mexendo de novo!
- Agora ele se joga!

O jornalista se enche de esperança...

- Ele tá tirando alguma coisa do bolso!
- É uma arma!
- Corre, corre!!!


O aglomerado de gente se dissipa gritando numa histeria singela, porém convulsiva. O repórter se extasia e logo pensa num título para a matéria “Homem armado sobe em árvore no centro da cidade e ameaça disparar contra a multidão”. Agora sim a proporção estava boa, o jornalista não tinha mais dúvida de estar diante de um grande evento.

- Que arma nada! É um garfo!
- Um garfo?
- É um garfo!
- Como você sabe?
- Olha lá, ele tá tirando cera do ouvido com o cabo do garfo!
- Cera do ouvido?

O jornalista fica bufando... Outro pequeno aglomerado de gente, mais tranqüila, começa a se formar de novo ao pé da árvore.

- Ó lá, ó lá, ele tá tirando alguma coisa de dentro do casaco...

Olhares apreensivos...

- Uma caixa?
- Um caixa!
- Um caixa?
- É uma caixa?!
- É, uma caixa de metal!
- Só pode ser uma bomba!
- Uma bomba?!
- Corre, corre!
- Chama a polícia!


O aglomerado de gente se dispersa. Cada um sai correndo para o lado mais conveniente. Uns caem no chão, outros derrubam sacolas, outros se trombam, e os mais empolgados com o espetáculo controlam o medo e se mantém por ali, mais afastados, no entanto. O jornalista recompõe seu êxtase, agora pensa “Terrorista sobe em árvore no centro da cidade e ameaça explodir uma bomba”.

- Ele está abrindo a bomba!
- Ai meu Deus! Ele vai explodir tudo!

Até o jornalista correu dessa vez. Mas, depois de alguns minutos e nenhuma explosão, ele e mais outros curiosos voltaram ao local...

- Ele tá lá ainda com a caixa?
- Tá sim!
- É uma marmita!
- Que?
- Uma marmita?
- É, ó lá, ele tá comendo.
- É mesmo, ele tá comendo!
- Ele tá comendo? É mesmo!
- É uma marmita!

O jornalista amaldiçoa o seu azar. Nem bomba, nem arma, só marmita! Puxa vida! Mesmo sem um grande furo, talvez ainda conseguisse algum espaço no caderno sobre o cotidiano da metrópole com aquele fato curioso do homem com a marmita. Então ele começa a escrever na caderneta seu relato. No dia seguinte, na página nove do caderno sobe cotidiano da metrópole, sai a seguinte matéria:

“Jornalista morre ao ser atropelado por carro do corpo de bombeiros no centro da cidade”

Enquanto cobria o caso de um homem que, segundo algumas testemunhas, estaria fazendo uma refeição no alto de uma árvore, o jornalista Mario Cândido de Oliveira foi atropelado por carro do corpo de bombeiros que, segundo a própria instituição, estava atendendo a um chamado de socorro ao homem que teria subido numa árvore. Este homem, que não quis se identificar, prestou depoimento à polícia como testemunha e afirmou: “Eu estava lá cima na árvore e vi um homem parado no meio da rua escrevendo num caderninho, pensei que era um louco ou coisa assim, porque ele não percebia onde estava. Quando vi que o carro dos bombeiros estava indo em direção a ele, tentei acenar e gritar para o homem sair dali, mas não sei porquê um bando de gente lá embaixo ficou gritando e acenando de volta para mim, então o homem não me ouviu e foi daí que ele foi atropelado”. O condutor da viatura que atingiu o jornalista, também em depoimento, afirmou que perdeu o controle do veículo por conta de uma falha no sistema de freios: "as viaturas estão muito ruins, sempre acontecem problemas mecânicos como este", declarou ele em entrevista. O corpo de bombeiros, em nota, prometeu abrir uma sindicância e punir os responsáveis. Nada de escrito foi encontrado no caderno de notas que estava em posse do jornalista. O velório de Mário Cândido está ocorrendo hoje (dia 23) no cemitério Parque das Araucárias, o enterro está previsto para às 13h00. O jornalista deixa esposa, dois filhos e uma vasta coleção de matérias sobre o cotidiano da metrópole publicadas neste jornal, além de outros escritos.


Seringueira-falsa

Podem dizer o que quiserem da seringueira-falsa, eu gosto dela de qualquer jeito. Podem dizer que ela é uma árvore que não pertence a este lugar, que é uma coisa exótica, não natural daqui, mas gosto dela mesmo assim. Podem dizer que ela rompe, com suas raízes sedentas, os asfaltos, calçadas, tubulações de água e esgoto das cidades, mas gosto dela mesmo assim. Ela pouco se importa de ser acusada de falsa, no nome que escolheram para ela, porque ela está preocupada com outras coisas além dos jogos de verdade dos homens. Das mulheres do reino vegetal, ela é minha mãe, porque me dá abrigo no conforto de seus inúmeros galhos emaranhados, formas perfeitas que convidam a subir, deitar e descansar, sob a chuva ou sob o sol, e ela não pede nada em troca. “Te dou porque te dou!” – é o que ela me diz. A falsa-seringueira me dá alegria e poesia, é mesmo uma mãe, até leite ela tem. Ela me ensina a andar, não pra frente, como minha mãe de carne, mas para cima, para onde apontam as estrelas, aonde ainda me falta ir. Se ela não me dá o alimento, porque não tem frutos comestíveis ou leite que eu possa beber, que importa? Eu não tomaria leite da minha mãe de carne se ela agora o pudesse me dar, e ter leite não faz dela minha mãe; o que faz dela minha mãe é me dar o que preciso, e é isso que a seringueira-falsa me dá: o que preciso dela.