22/10/2008

Desestímulo

A tinta azul da caneta
é forçada num pensar qualquer
disso só sai uma faceta
do múltiplo que o poeta é

Na folha branca de papel
reduz o universo em verbete
tudo entre a terra e o céu
bota na cabeça dum alfinete

Ele procura uma rima rica
para enfeitar seu poema
mas ele diagnostica
que ainda lhe falta um tema

De que falar, afinal?
ele se questiona
pois lhe falta um cabedal
de belos axiomas

Um dito lhe ressalta
arremeda a frase alheia
“quando proseia a alma
a alma já não proseia”

O poeta se descrê
mas, súbito, ele percebe
que a falta do que dizer
é o dizer que lhe compete

Daí ele põe outra estrofe
só pra encher lingüiça
só pra fazer galhofe
da sua falta de premissa

Relendo seus versos
nota que falha a métrica
mas são apenas excessos
de sua valoração estética

Agora meditabundo
volta ao tema que não tem
de que vale falar do mundo
se agora nada convém?

O verso livre ele almeja
com nada aqui em cima
e embaixo esta cereja
compõe a última rima

Agora sim eis um verso livre
experimenta o poeta
uma liberdade profunda
ilusória, sabe ele
porque ainda está preso
ao cárcere das palavras
O que dizer com elas?
eis uma vírgula,
eis uma exclamação!
eis um espaço reticente
.
.
.
e as próprias reticências....
Interroga-se o poeta
com um belo ponto
de interrogação
grande como o vazio
que há no seu coração
?

O verso anterior denuncia:
ele quer continuar rimando
então retoma a poesia
conforme aparenta seu plano

Apesar da referência
não há plano algum
brinca com a consciência
pela falta de um

Agora o poeta chega
à estrofe décima-quarta
na xícara, café despeja
e da caneta se aparta

...

Quando retoma o trabalho
assume a primeira pessoa
no poema eu me abstraio
da caneta a tinta escoa

Noto que ainda não tenho
algo para servir de título
e como fruto do meu engenho
sai então “Desestímulo”

Já não sigo firme
no meu poema incidental
antes que nele me confine
boto aqui este ponto final.