05/12/2008

A porta

Parou em frente à porta, fez menção de abri-la, querendo transpô-la, acessar o outro lado, escancarar de uma vez o que estaria escondido ali, entranhar num desconhecido que a ele causava comichões. Risos do outro lado! Estão caçoando de mim outra vez! Vou entrar!... Não entrou. A curiosidade lhe travou nas juntas das articulações, a mão ávida e espalmada cessou antes de tocar o frio metal da maçaneta. Virou-se, deu as costas para a porta, fez que ia embora, mas estacou sob ordem dos ouvidos. Estão rindo? Sim, devem estar rindo de mim! Tem gente lá dentro rindo de mim. Vou entrar. Agora não. Agora não. Ensaiou uns passos para além da porta, acabou saindo dali. Foi embora sem abrir a porta. Mas algum dia entrarei, em outra ocasião!

Sempre estava escuro do lado de dentro, nunca tinha visto uma só luz saindo dali. Havia uma janela ao lado da porta, sempre coberta com cortinas que resguardavam a escuridão do interior, nunca a vira aberta. Tem gente lá dentro, no escuro! Sempre está escuro. Como pode gente viver no escuro? Não, estão caçoando de mim, é uma gozação. Quando eu passo, começam a rir de lá de dentro, só para fazer desdém. É isso. Vão para o inferno!

Nos dias seguintes passou ao largo da porta, ignorando que lá de dentro ria. Talvez assim pudesse inibir a curiosidade que efervescia na sua barriga toda vez que passava na frente dela. Evitou olhá-la diretamente, vez ou outra a espreitava com os cantos dos olhos, desconfiado de que era a porta que espreitava.

Mas as noites começaram a ficar mal dormidas. Em uma delas sonhou que a porta lhe batia na cara, como quem deseja entrar, como toda gente faz com as portas. Bateu tanto que ele desmaiou, e quando desmaiou, acordou do sono. Ficou de olho estalado, buscando no clarão da lâmpada do teto do quarto, que sempre estava acesa, o calor para fulminar a recordação do sonho.
Dali a pouco pegou no sono. A porta apareceu de novo, estava miúda, ao longe num lugar envolto de uma escuridão em que ela era o único objeto visível; nem céu, nem chão, nem gente, nem nada além da porta. Ele foi se aproximando, temeroso. Quando chegou perto suficiente, tentou tocá-la, mas ela se afastou para longe, repentinamente. Tentou se aproximar mais uma vez, mas a porta se pôs a fugir a toda investida dele. Ele, então, precipitou-se a correr atrás dela, mas a porta era muito mais rápida. A certa altura se cansou, deixou de ir atrás dela, mas foi aí que notou que ela estava vindo ao seu encontro, primeiro aos poucos, depois muito acelerada. Ele se assustou e saiu correndo, fugindo, no meio da escuridão. Como não havia nada em volta além do denso negrume, sentiu-se correndo sem sair do lugar, e quando ousou olhar para trás, foi para ver a porta que, já estando rente, acertou-lhe com violência na cabeça. Mais outra vez ele desmaiou, e mais outra vez acordou do sono transtornado, respirando fundo a luz lâmpada.

Num sobressalto jogou para longe a coberta, deixou o abrigo da luz artificial, caminhou por alguns minutos, primeiro em círculos pensantes, de um ponto a outro, depois foi em direção à porta. Prostrado em frente a ela, estendeu a mão hesitante... as risadas irromperam do outro lado e ele estacou, deixando o braço pender do corpo. Estão rindo de mim outra vez! Quem é essa gente? Passo por tantas portas todos os dias, por que essa fica me macerando os miolos? Da sua garganta subiram soluços, dos olhos verteram as lágrimas. Por que desdenham de mim? Não, não vou entrar! E dizendo isso, enganou o medo, num movimento brusco torceu a maçaneta e laçnou seu corpo contra a porta.

A luz do sol caiu sobre ele como um enxame de insetos vorazes. Seus braços erguidos sobre o rosto tentaram proteger os olhos do flagelo dos raios vindos do céu Seus pés descalços calcaram a grama molhada das gotas de orvalho. Pelos olhos entreabertos e assustados viu um mundo infinitamente amplo, sem paredes. Tudo era excessivamente nítido, com contornos vistosos, cores que pareciam saltar e falar por si próprias. O céu era como um oceano de cabeça para baixo, de um azul denso como que desejoso de ser mergulhado por voadores ousados. Mais a frente, crianças brincavam, correndo de um lado a outro, tocando umas as outras, rolando no chão, pulando, e de tudo isso achando muita graça, rindo sem razão.