27/04/2009

Tem um homem em cima da árvore!

- Tem um homem em cima da árvore!
- Quê!
- Um homem! Lá em cima, na árvore!
- Nossa, como ele conseguiu subir lá, é muito alto?!
- Sei lá! Eu só quero ver como ele vai descer.
- Só pode ser um ambientalista.
- É mesmo! Tá protestando!

Um jornalista que passa pelo local se dá conta de que pode estar diante de uma boa matéria. Então saca no bolso do paletó um caderno de notas, uma caneta e se põe a pensar num título para a matéria: “Ambientalista protesta subindo em topo de árvore no centro da cidade”. Enquanto isso, um pequeno aglomerado de gente vai se formando ao pé da árvore.

- Olha lá, ele tá se mexendo!
- Deve ser algum sinal de protesto.
- Não, ele só está coçando as costas.
- Coçando as costas?
- Não! Ele pode estar pedindo ajuda.
- É, deve ser um retardado. Ele deve estar com medo!
- E mesmo, olha lá, ele tem cara de louco mesmo, é melhor chamar os bombeiros.

O jornalista, então, repensa o título da matéria “Homem com problemas mentais sobe em árvore no centro da cidade”.

- Não dá nem pra ver a cara dele, como você tá falando que ele tem cara de louco?
- Sei lá, pra subir em árvores assim só pode ser louco!
- Louco nada, olha lá, ele tá ameaçando pular!
- Ai, meu Deus, ele vai se jogar!

Gritos! (principalmente das mulheres). O jornalista, eufórico com furo de reportagem, pensa em um novo título “Suicida se atira do topo de árvore no centro da cidade”. Uns urgem afoitos a chegada do corpo de bombeiros, outros pegam seus celulares e ligam para qualquer lugar que possa providenciar socorro para o homem, outros tentam gritar ao homem para dissuadi-lo do suicídio, já outros...

- Não, olha lá! Ele não vai se jogar, ele só estava coçando a bunda!
- Coçando a bunda?
- É, ó lá! Coçando a bunda.
- Á tá, é mesmo.

O jornalista se frustra, seu furo está ameaçado. “Homem coça a bunda no topo de árvore no centro da cidade” não seria um bom chamariz para os leitores do jornal. Esperançoso, ele então continua crendo se tratar de um suicida.

- Ele tá se mexendo de novo!
- Agora ele se joga!

O jornalista se enche de esperança...

- Ele tá tirando alguma coisa do bolso!
- É uma arma!
- Corre, corre!!!


O aglomerado de gente se dissipa gritando numa histeria singela, porém convulsiva. O repórter se extasia e logo pensa num título para a matéria “Homem armado sobe em árvore no centro da cidade e ameaça disparar contra a multidão”. Agora sim a proporção estava boa, o jornalista não tinha mais dúvida de estar diante de um grande evento.

- Que arma nada! É um garfo!
- Um garfo?
- É um garfo!
- Como você sabe?
- Olha lá, ele tá tirando cera do ouvido com o cabo do garfo!
- Cera do ouvido?

O jornalista fica bufando... Outro pequeno aglomerado de gente, mais tranqüila, começa a se formar de novo ao pé da árvore.

- Ó lá, ó lá, ele tá tirando alguma coisa de dentro do casaco...

Olhares apreensivos...

- Uma caixa?
- Um caixa!
- Um caixa?
- É uma caixa?!
- É, uma caixa de metal!
- Só pode ser uma bomba!
- Uma bomba?!
- Corre, corre!
- Chama a polícia!


O aglomerado de gente se dispersa. Cada um sai correndo para o lado mais conveniente. Uns caem no chão, outros derrubam sacolas, outros se trombam, e os mais empolgados com o espetáculo controlam o medo e se mantém por ali, mais afastados, no entanto. O jornalista recompõe seu êxtase, agora pensa “Terrorista sobe em árvore no centro da cidade e ameaça explodir uma bomba”.

- Ele está abrindo a bomba!
- Ai meu Deus! Ele vai explodir tudo!

Até o jornalista correu dessa vez. Mas, depois de alguns minutos e nenhuma explosão, ele e mais outros curiosos voltaram ao local...

- Ele tá lá ainda com a caixa?
- Tá sim!
- É uma marmita!
- Que?
- Uma marmita?
- É, ó lá, ele tá comendo.
- É mesmo, ele tá comendo!
- Ele tá comendo? É mesmo!
- É uma marmita!

O jornalista amaldiçoa o seu azar. Nem bomba, nem arma, só marmita! Puxa vida! Mesmo sem um grande furo, talvez ainda conseguisse algum espaço no caderno sobre o cotidiano da metrópole com aquele fato curioso do homem com a marmita. Então ele começa a escrever na caderneta seu relato. No dia seguinte, na página nove do caderno sobe cotidiano da metrópole, sai a seguinte matéria:

“Jornalista morre ao ser atropelado por carro do corpo de bombeiros no centro da cidade”

Enquanto cobria o caso de um homem que, segundo algumas testemunhas, estaria fazendo uma refeição no alto de uma árvore, o jornalista Mario Cândido de Oliveira foi atropelado por carro do corpo de bombeiros que, segundo a própria instituição, estava atendendo a um chamado de socorro ao homem que teria subido numa árvore. Este homem, que não quis se identificar, prestou depoimento à polícia como testemunha e afirmou: “Eu estava lá cima na árvore e vi um homem parado no meio da rua escrevendo num caderninho, pensei que era um louco ou coisa assim, porque ele não percebia onde estava. Quando vi que o carro dos bombeiros estava indo em direção a ele, tentei acenar e gritar para o homem sair dali, mas não sei porquê um bando de gente lá embaixo ficou gritando e acenando de volta para mim, então o homem não me ouviu e foi daí que ele foi atropelado”. O condutor da viatura que atingiu o jornalista, também em depoimento, afirmou que perdeu o controle do veículo por conta de uma falha no sistema de freios: "as viaturas estão muito ruins, sempre acontecem problemas mecânicos como este", declarou ele em entrevista. O corpo de bombeiros, em nota, prometeu abrir uma sindicância e punir os responsáveis. Nada de escrito foi encontrado no caderno de notas que estava em posse do jornalista. O velório de Mário Cândido está ocorrendo hoje (dia 23) no cemitério Parque das Araucárias, o enterro está previsto para às 13h00. O jornalista deixa esposa, dois filhos e uma vasta coleção de matérias sobre o cotidiano da metrópole publicadas neste jornal, além de outros escritos.


Seringueira-falsa

Podem dizer o que quiserem da seringueira-falsa, eu gosto dela de qualquer jeito. Podem dizer que ela é uma árvore que não pertence a este lugar, que é uma coisa exótica, não natural daqui, mas gosto dela mesmo assim. Podem dizer que ela rompe, com suas raízes sedentas, os asfaltos, calçadas, tubulações de água e esgoto das cidades, mas gosto dela mesmo assim. Ela pouco se importa de ser acusada de falsa, no nome que escolheram para ela, porque ela está preocupada com outras coisas além dos jogos de verdade dos homens. Das mulheres do reino vegetal, ela é minha mãe, porque me dá abrigo no conforto de seus inúmeros galhos emaranhados, formas perfeitas que convidam a subir, deitar e descansar, sob a chuva ou sob o sol, e ela não pede nada em troca. “Te dou porque te dou!” – é o que ela me diz. A falsa-seringueira me dá alegria e poesia, é mesmo uma mãe, até leite ela tem. Ela me ensina a andar, não pra frente, como minha mãe de carne, mas para cima, para onde apontam as estrelas, aonde ainda me falta ir. Se ela não me dá o alimento, porque não tem frutos comestíveis ou leite que eu possa beber, que importa? Eu não tomaria leite da minha mãe de carne se ela agora o pudesse me dar, e ter leite não faz dela minha mãe; o que faz dela minha mãe é me dar o que preciso, e é isso que a seringueira-falsa me dá: o que preciso dela.

14/04/2009

Ao girassol

O dia estava bonito e saí da mata para ver o sol. Parei em frente a um girassol, e quando olhei para ele, estava olhando para mim, porque quando olho para as coisas, eu olho para mim, como se eu estivesse nelas, sendo parte delas, e elas de mim. Eu vi a flor, me vi e fiquei feliz. O girassol, então, como achando o dia bom e propício para pensar, me lançou uma questão: o que faz de mim um macaco, meus vícios ou minhas virtudes? Pensei, e respondi:

- Nenhum dos dois, o que faz de mim macaco é a biologia, eu não me macacazeio em função de vícios e virtudes, pois elas, antes de serem coisas, são pontos de vista.

Era claro que o girassol estava preocupado com uma questão dos homens, então prossegui:


- Os homens costumam falar no que os humaniza, como se eles precisassem ser um conceito criado deles mesmos; como se estivessem, por alguma tragédia, escapando a esse conceito e, assim, se sentindo num vazio indefinível. A biologia serviu para dizer “isso é uma espécie”, “eis a lógica dela” e assim criar um mundo de conceitos para cada uma delas. Se o humano é apenas mais uma espécie e a questão do que humaniza o homem é relevante, então a questão do que porcozeia o porco também deve ser, ou, do contrário, seria apenas a nova forma de arrogância, que alguns chamam de especismo. A biologia encerrou o cerimonial que colocou o homem espécie no lugar dos deuses, para que fosse possível louvar a si próprio, sua constituição animal e, sobretudo, sua razão, esta mesma que deu origem ao conceito de espécie humana. Assim, os homens louvam aquilo que os reduziu a um organismo de funcionamento lógico, e o que se reconhece de ruim nele se equivale ao que há de ruim em qualquer outra espécie. Daí se transformam os conceitos de vícios e virtudes em inerências da espécie. Assim, tudo que é do homem se torna natural como tudo que é do porco. E para abrigar essa naturalidade, curiosamente, cria-se um ambiente artificial, porém natural, que é uma selva própria para abrigar sua selvageria também própria, da qual se orgulham. E as coisas que não são dessa selva, vão acusar como sendo chatices, marasmos, tédios, etc. Mas não percebem que suas cidades horrorosas são monocromáticas e estúpidas, porém vistas através de olhos adoentados como o mais belo colorido, a criação mais bela, se não bela, apenas necessária para garantir a reprodução da espécie, mesmo se estúpida. Tem gente que admira a cidade, ainda que não tenham girassóis como você, em que me vejo e me fundo com o amor que ignora qualquer classificação taxonômica, porque é transgressor e também não respeita os limites criados entre espécies. Portanto, meu lindo girassol que brilha a luz do dia, a questão do que me torna um macaco não importa, porque respondê-la significa me separar de você, desviar meus olhos, esquecer de amar e preferir ficar cego. A toda questão, o questionamento da sua relevância; a toda questão, a própria questão. A questão não serve para guardar, mas para derrotar a própria questão. O macaco não falado é o macaco livre, e é assim que eu quero viver.

13/04/2009

Para os apaixonados

Certo dia estava andando por outras bandas da cidade à procura de um lugar em que, segundo alguns cães de um bando que conheci, costumavam depositar sacos cheios de carnes já passadas, mas ainda boas para comer. No caminho, tive que cruzar uma longa e larga calçada cheia de gente. Entre a multidão, notei que havia um homem que falava aos transeuntes, sem que estes lhe dessem muita atenção. Vira e mexe esses sujeitos aparecem por aí, em esquinas, becos, praças e parques falando pelos cotovelos. Eu gosto deles, primeiro, porque muitos deles vivem como nós, cães; segundo, porque sempre trazem uma novidade interessante: um apocalipse ali, a vinda de um homem lá, o retorno do reino “x” acolá, entre tantas outras. Por isso resolvi parar na frente do homem – eu era o único – para ver se ele tinha alguma novidade. Ele dizia:

- ...vocês que estão apaixonados, não sejam tolos, livrem-se desse sentimento. Dizem ser um sentimento natural, mas não dêem credito, porque ele é tão natural como o ódio, e tão destrutivo quanto, porque não revela a verdade das coisas. Não se deixar apaixonar é não se deixar enganar. Alguns podem dizer que a essência da paixão é o amor, mas não creiam, nele não há sequer essência, a não ser que a ilusão possa ser considerada a essência de algo ou cegueira como a essência do enxergar. Mas cuidado para não ceifar o amor e se tornar árido como um deserto. A paixão é o amor que falhou, que confundiu o espírito com suas vestes e o verdadeiro com o falso. A paixão não é o excesso de amor, são os excessos dos desejos de quem não vê a verdade do amor. É claro que se aceita a paixão e a enaltecem como sendo o ânimo da vida. É de se esperar que num mundo de ilusões, esse sentimento pareça dar o tangível do real, mas, antes, ele é mais uma peça desse quadro fantasioso que fizemos de nossas vidas. Onde a mentira triunfa, a verdade parece loucura. A paixão também pode parecer loucura, mas é parte da normalidade, porque quanto mais mentiras temos, mais delas precisamos, mais delas dependemos, mentiras maiores demandamos para podermos sustentar a lógica absurda da nossa razão doente, doente porque é amputada do espírito. E sem espírito nos colocamos neste mundo; sem espírito perambulamos por essas ruas nojentas; sem espírito saímos todos os dias para trabalhar na edificação duma grande obra que é a destruição de nós próprios; sem espírito nos colocamos diante de Deus achando que Ele falará por meio dos encantamentos da matéria; sem espírito nos arriscamos a amar, e o amor sem espírito é a paixão, é o amor da normalidade. A verdade construída tem nome, e se chama falsidade, a outra só o amor pode ver. Quem ama a verdade, vai querer vê-la em todos os seres cheios de vida, e assim vai amar imensamente. Amor e verdade andam juntas, indissociáveis, só quem vê a verdade pode amar, e só quem ama pode ver a verdade. O amor é simples como ver ou ouvir, não carece do uso de cerimoniais estúpidos para se manifestar, de penteados bem esculpidos, de jóias brilhantes, do cheiro roubado das flores, de ardis discursivos, do colorido das roupas ou de qualquer outro signo que tragamos no corpo. O único signo do amor é o próprio amor, porque o amor vê o próprio amor, ele se reconhece porque ele faz parte de uma coisa só, quando o amor está diante do amor é uma fusão, a união. O amor não pertence a ninguém, ninguém tem a propriedade do amor, também ninguém ama a seu jeito, porque só existe um jeito de amar. Não existe uma forma de demonstrar o amor, porque quem estiver cheio de amor, só o amor demonstrará, seja lá que forma tenha. Portanto, apaixonados, acordem, despertem, abram os olhos! E àqueles que nunca se apaixonaram, digo: não anseiem por isso, a paixão não é o cume de nossas vidas, o lugar mais alto e mais belo para se estar, mas sim um lugar nas alturas do delírio sustentado por andaimes mal armados. Quem se apaixona, está sozinho na multidão, e morto quando está sozinho. Quem ama está entre irmãos na multidão, e com Deus quando está só...

Não, nenhuma novidade.