28/03/2011

O poema que não consegui entregar


Do diário de bordo
Em Vilhena (RO)

Estava lá pelas bandas do Mato Grosso, num posto de gasolina, descansando um pouco, sentado ao lado da bicicleta e escrevendo algumas coisas do caderno. Dali a pouco apareceu uma moça, vinda lá de dentro do restaurante, com olhar curioso ela ficou olhando para a bicicleta procurando alguma coisa. Então olhou pra mim e perguntou se eu fazia artesanato, disse-lhe que não. Ela foi para dentro de novo, mas logo voltou, e vendo que eu estava escrevendo, perguntou-me se eu fazia versos, eu disse que sim e, então, ela me pediu que fizesse uns versos para ela.Como fazer um poema para alguém sobre a qual não se sabe muito? Bom, sabia que ela gostava de ver os artesanatos de quem passava ali no posto vendendo coisas do tipo, mas isso não era suficiente. Então, sem ter um tema muito bom, pedi que ela sentasse ao meu lado e lhe perguntei o que era importante para ela. "A paixão", foi o que ela me respondeu, fazendo uns gestos engraçados balançando as mãos, sentindo-se um pouco nervosa. Daí eu voltei a perguntar: 
- E o que é a paixão pra você?
Com os mesmos gestos engraçados, ela me respondeu: 
- Sei lá, não dá pra explicar!
- Mas a função da poesia é exatamente essa: dar palavras para um inexplicável - disse a ela tentando fazer com que ela me dissesse algo mais sobre aquilo que parecia muito importante para ela.
- Sei lá, o coração palpita, a mão fica suada... - eu estava quase conseguindo um tema...
- Que mais é importante pra você? - voltei a perguntar tentando garimpar aquela alma que estava ali sentada um pouco aflita.
- A alegria... a família - foi o que ela me respondeu, mas não foi tão intenso comoi quando ela me falou sobre a paixão.
Ela parecia apressada. De fato, ela me disse que tinha que servir o almoço para o avô, e então se foi, deixando para mim o tema a ser trabalhado e o seu nome "Andressa". Pronto, estava ali eu e a paixão em mais um confronto direto, frente a frente na arena dos versos. O que faria? Ao mesmo tempo em que queria agradar a moça - pois o pessoal do posto já ne havia feito a gentileza de oferecer um almoço - queria lhe falar que a paixão não era algo a que ela deveria se dedicar tão ardorosamente, que seria melhor transcender aquilo. Mas resolvi ser obediente, e tentar traduzir o que ela estava sentindo, sem  buscar transcender coisa alguma. Saiu algo mais ou menos assim:

Meu coração palpita
E sinto suar a mão
Não sei se estou aflita
Ou se derreto de paixão

Tem algo de mistério
Tem muito de saboroso
É um brincar de jogo sério
Morrer em mim, viver no outro

Há coisas que me fazem sorrir
E coisas que me fazem temer
Há coisas boas de sentir
E outras que não quero ver

Mas há algo que não sei explicar
Além da alegria e da tristeza
Quando ouço meu amor sussurrar
Em meu ouvi, meu nome: Andressa

Certo! Já tinha os versos. Não sei com foi a reação dela, porque não voltei a encontrá-la. Depois do almoço deixei o poema com o rapaz que ficava no caixa e segui viagem. Mas não fiquei satisfeito. Senti-me culpado exaltando a paixão daquele jeito. Nestas bandas de cá, ouve-se muita música sertaneja cujos temas variam entre festa, bebida, traição - vulgo chifre - e a famigerada paixão. E toda vez que ouço uma música em que o cantor se rasga de paixão dizendo coisas como "...é para sempre", "...nunca vou te deixar", "...você é a melhor de todas" só consigo pensar que estou ouvindo um monte de mentiras. Todos já sentimos isso, e sabemos que esse sentimento nos faz dizer as coisas mais estranhas. Ele é como um coquetel de euforia, alegria, tristeza, mais umas rodelinhas de medo e um canudinho para beber chamado desejo. Quando estamos sob efeito dele, queremos que ele dure para sempre, mas isso é como tentar ancorar as nuvens. É uma história que já conhecemos, mas repetimos sempre, tentanto fazer com que... bem... fazer com que a história se repita. Mas o que há além das reprises?
...
Enfim, se tivesse a oportunidade de me redimir da culpa de ter feito aquele poema para a moça, entregaria isso para ela:

Ter um foguete, mas o teto baixo
Ter a parreira, mas não ter o caixo
Ter a viola, mas não a canção
Ter a terra, mas não ter o grão

Ter a árvore, mas não o fruto
Ter o fruto que não está maduro
Ter o capim e faltar o cavalo
Ter o cavalo, mas não ter o pasto

Um periquito na escuridão
Um morcego, fora, no clarão
Um beija-flor sem velocidade
Uma velhice sem não ter idade

Ser um tatu que não faz buraco
Ser um buraco sem nada enterrado
Ser o defunto, mas faltar a cova
Ser quem morreu mas não foi embora

Ser a cana sem o caldo doce
Ser o carteiro que a carta não trouxe
Ser a encomenda que nunca chegou
Ser o diploma que não faz doutor

Fazer o traço sem ter a baliza
Falar o verbo que não verbalza
Obra prima que ficou no esboço
Uma girafa com nó no pescoço

É o sofrer de quem não tem
E é o ter e sofrer também
É traçar o círculo com esquadro
Assim sofre um ser apaixonado

Atrás da roupa a pele está pelada
Um olhar é porta escancarada
Pra quem vê é só dar uma olhada
Pra ver um amor que é posse mascarada

O giz escreve e depois se acaba
Brinquedo novo, em breve, vira tralha
Só pra queimar serve o pavil
Paixão eterna ninguém nunca viu

Mas não é raro conhecer o amor
É só parar e ver a flor
O amor floresce bem ali
Na paz de quem se esqueceu de si

24/03/2011

Um perdido de cabeça para baixo

Caminhando e farejando pela beira da estrada, percebi um sujeito dependurado de cabeça para baixo no galho de uma árvore. De cara sorridente e olhar perdido em algum lugar, parecia distraído com algum pensamento. Aproximei-me, sentei e abanei-lhe o rabo, aguardando o bocado do que ele estava esperando por compartilhar, já que ele tinha olhos de descoberta. Após algum tempo, ele se ajeitou no galho, tomou postura diante da platéia de arbustos, árvores, pedras e um vira-lata, e, então, soltou palavras como águas que estavam sendo represadas

"Estou me perdendo. Ando com a estranha sensação de que me falta explicação para andar, e por isso tenho andado mais leve, como se tivessem ficado pelo caminho os barris de água que costumava rolar por causa da grande sede que sentia."

"É, estou me perdendo. Como o esposo fiel e amoroso que só vê o futuro da sua vida e o propósito do viver presente enlaçados à vida da esposa amada, já não sei de mim, senão em função do universo, dos seres viventes, e das coisas que parecem não ter vida, como um tolo que se deixou levar pela lábia encantadora da natureza."

"Ao pé da árvore, à beira da corredeira, saboreando o fruto maduro, deitado na rocha esquentada pelo sol, os sentidos festejam a realidade, não por a estar conhecendo, mas relembrando. E a alma dá um sorriso lá dentro, ao reencontrar a velha amiga."

"E ao me perder assim, sem controle do que se passa, sendo um passageiro da carruagem da existência, a impressão é de estar descobrindo o segredo que os poetas morreram tentando encontrar, mas que é uma bobagenzinha de nada que fica ali, debaixo do pé de manga, na ponte sobre o rio, no voo da borboleta azul."

"Muitos vivemos da grandeza, que não é grandeza, mas inchaço. Vivemos de tesouros encontrados, entre tesouros deixados por aqueles que morreram infelizes."

"Então... me perdendo para a vida, achando graça em existir, vivo das pequenas coisas, embora não sejam pequenas. Uma onda só bate na praia, porque existe um oceano inteiro."