16/05/2011

Mas você come o quê?

Do diário de bordo
Em Boa Vista (RR)
    

     "Mas você come o quê", é a pergunta que respondo, entre tantas outras, tenho que responder mais ou menos todos os dias, seja quando vou me alimentar num restaurante ou como convidado na casa de alguém. É comum isso acontecer com os vegetarianos. Comigo, quase sempre há um diálogo explicativo - e muitas vezes longo - sobre minha dieta antes de cada refeição.

    Apenas dizer a uma pessoa que se é vegetariano não resume muito, pois não é raro que a isso se sigam perguntas como "Você só come salada?" ou "E peixe, você come?". Também não adianta apenas dizer que não como carne, pois depois disso é normal oferecerem frango, peixe ou porco, já que muitos têm a palavra "carne" como sinônimo de carne de boi. A frase que mais tenho usado para resumir minha dieta é: "Eu não como bichos" ou "Como tudo menos os bichos". Estas têm sido as mais eficientes para se fazer entender, embora elas não assegurem que o feijão virá sem bacon ou toucinho.

     Seria mais fácil apenas pedir um prato de arroz, feijão e salada – em geral a única opção vegetariana na estrada – mas é mais provável que isso leve a pessoa a pensar que eu seria um pobre coitado que estaria sem dinheiro para comprar um prato com carne, ou que, no caso de ter sido convidado para a refeição, estaria sendo excessivamente humilde. O resultado poderia ser justamente o inverso do esperado: que o prato viesse com uma grande porção de carne, como demonstração da generosidade daquele que serve a refeição.

     Por isso tudo é que há sempre um diálogo explicativo antes de cada refeição – e às vezes durante e depois – para que se entenda o que como e o que deixo de comer. Normalmente, essa postura causa estranhamento, porque não há muito vegetarianos andando pelas estradas e interiores do Brasil, muito menos de bicicleta. Para muitos eu fui o primeiro vegetariano que conheceram, por isso é comum que me olhem com interrogação nos olhos. Alguns até ousam perguntar o porquê dessa escolha, e é aí que o diálogo pode se estender, o que é muito bom, porque daí surge uma reflexão sobre os hábitos alimentares que, para minha surpresa, às vezes acaba por fazer com que alguns resolvam mudar esses hábitos.

     Foi isso que aconteceu dias atrás quando eu fui acampar na orla do Rio Branco, na cidade de Iracema, em Roraima. Tinha pedalado todo o dia e já era hora de descansar. No restaurante que fica na orla, estavam três homens que me convidaram para comer uma peixada – a bicicleta carregada de tralhas e as roupas sujas parecem avisar “viajante faminto”. Agradeci dizendo que eu só comia vegetais, naturalmente eles pareceram estranhar e fizeram comentários entre si, mas depois disse que aceitaria um pouco de arroz, caso houvesse, pois seria um bom acompanhamento para a seleta de legumes e milho que trazia comigo. Sentei-me com eles, e como de costume, fizeram muitas perguntas sobre a viagem, mas um deles parecia mais interessado nos meus hábitos alimentares. A certa altura da conversa, subitamente, ele decidiu que mudaria sua dieta a partir do dia seguinte, pediu papel e caneta para a atendente do restaurante e começou a compor a nova dieta com base no que eu lhe dizia. Falei-lhe sobre alimentos que ele sequer conhecia, mesmo apesar de não muito raros, como aveia e linhaça. Ao final de alguns instantes ele tinha uma lista do que comer pela manhã, no almoço e no jantar, tudo essencialmente vegetariano. Não recomendei que ele abolisse a carne de uma vez, porque, em geral, radicalismos assim não levam à incorporação de hábitos duradouros, embora tenha sido justamente assim, radicalmente, que deixei de comer carne.

     Depois disso, ainda conversamos muito. Um deles me perguntou se contava com apoio de prefeitos por onde passava, respondi que não buscava esse tipo de apoio, então ele disse:

- Agora você já pode dizer que conheceu o prefeito de Iracema

- Você é o prefeito? – perguntei um pouco surpreso.

- Não, é ele. – e apontou para o homem que tinha acabado de reformular sua dieta.

     Por causa disso discutimos longamente sobre política, governo e gestão pública. Depois, ainda nos divertimos com algumas brincadeiras e truques de mágica com algumas crianças que estavam por ali.

...

     Lembro de um senhor vegetariano que, cansado de ter que sempre explicar a razão pela qual não comia animais, simplesmente começou a mentir dizendo que se tratava de recomendação médica, explicação que de pronto conta com a compreensão alheia. Ele também fazia chacota, dizendo que não comia carne para que sua bunda ficasse mais bonita, talvez supondo que a vaidade seja mais compreensível do que uma postura ética em favor da vida e liberdade dos animais.

     Ainda não me cansei de dar explicações sobre esse assunto, embora saiba que a maioria de nós pouco se importa com o assassinato e humilhação dos animais e que sequer considera esses seres como expressão da vida, da qual não deveriam ser privados de modo tão banal. Contudo, encontrei muitos já convencidos de que não deveriam mais comer carne, mas que simplesmente não conseguiam se livrar desse hábito, talvez pelos argumentos mais fortes do apetite ou talvez pelas amarras disso que chamamos de cultura, coisa que reproduzimos sem saber a razão.

     Não acho que o vegetarianismo seja um tema isolado, que diga respeito somente ao hábito alimentar em relação à saúde corpórea. Sem dúvida ela é mais saudável e pode, ao contrário do que muitos pensam, sustentar ao esforço necessário para pedalar 70 ou 100 km por dias, como tenho feito. Mas isso não é o fundamental. O vegetarianismo é, antes de qualquer outra coisa, uma decisão ética e, para muitos, um princípio espiritual, que se relaciona com a perpetuação da vida desta humanidade e deste planeta.

     Não costumo fazer militância por essa causa, mas não me importo de estragar a refeição de alguém se, durante o jantar, for perguntado o porquê do vegetarianismo e eu tiver que evocar algumas imagens horripilantes sobre o processo que foi necessário para trazer um pedaço de cadáver até o prato desse alguém. Afinal, não tem nada de mais nisso, é apenas a realidade, além disso, eu estaria apenas respondendo à pergunta do modo razoavelmente sincero. Contudo, evitar conflitos é a máxima para um desterrado, sempre é preferível o silêncio do que uma cutucada. Estar com a boca cheia de vegetais doados pela terra ao invés da carne arrancada contra a vontade dos bichos é algo muito bom, melhor ainda é estar com boca calada.

03/05/2011

Num vilarejo de Roraima

     Do diário de bordo
Em Iracema (RR)

     Já era noite no vilarejo de Petrolina, às margens da BR-174 em Roraima. Eu estava acampado na varanda da sede da Associação de Moradores, lugar, aliás, que era abrigo de uma cão vira-lata que fugiu quando entrei ali. Apesar do cansaço não conseguia dormir, do outro lado da rodovia uma picape com quatro grande caixas com auto-falantes na traseira ensurdecia a todos do vilarejo tocando músicas de todo gênero. Em volta da picape tinha se formado um pequeno grupo de beberrões que só podiam conversar aos berros. Depois de duas horas, aquilo já estava se tornando um suplício - talvez não só para mim. Eu não fazia mais que esperar deitado dentro da barraca o fim daquilo para que eu pudesse dormir. Mas foi aé que me passou uma idéia pela cabeça, algo do qual já tinha ouvido falar bastatnte: usar a força do pensamento para acabar com o barulho. Dizem certos místicos e esoteristas que um pensamento, dependendo da vontade em que se é empregada nele, pode se efetivar e transformar as coisas no plano físico. Foi isso que fiz, e sabendo o que queria - o silêncio - me vi comicamente maquinando com a mente como isso deveria acontecer. Primeiro pensei ser interessante que os auto-falantes estourassem, mas refleti e julguei que isso seria algo muito violento. Então pensei em algo menor, como a queima de um dos fusíveis do carro, mas ainda isso me pareceu inadequado. Por último me ocorreu mandar mensagens para o dono do carro pedindo que ele abaixasse o volume. Fiquei insistindo na transmissão e, incrivelmente, minutos depois, o som foi desligado. Antes, poré, que eu pudesse comemorar o feito extraordinário, surgiu uma algazarra ali perto. 
     Homens começaram a discutir, depois mulheres gritavam desesperadamente. Saí da barraca para ver o que se passava. Vi que há uns 50 metros homens trocavam sopapos e empurrões, enquanto outros tentavam apartá-los. No meio da pancadaria, alguns tentaram fugir de carro, mas como a ignição estava possivelmente com problemas, tiveram que empurrá-lo  entre a multidão confusa. O cenário era cômico e trágico.
     O dono da picape com os auto-falantes enormes também resolveu se mandar dali. Saiu às pressas, entrou no carro e acelerou fundo. Por pouco os auto-falantes não despencaram da traseira do carro. Talvez, se tivesse insistido mais no pensamento de estourar os auto-falantes, eles teriam caído naquele instante - foi o que pensei sarcasticamente naquele instante.
     A confusão se desenrolou ainda por algum tempo, com direito a golpes de facão, cadeiras e mesas voadoras. Com outros dois curiosos que apareceram ali onde eu estava, conversávamos sobre a pancadaria como comentaristas esportivos. Isso me fez recordar a minha infância pelas periferias de São Paulo, quando vez ou outra assistia, de cima da laje da casa dos meus pais, a brigas, tiroteios e perseguições policiais. A cena era familiar e a paisagem não era muito diferente daquela do bairro onde cresci e de tantas outras currutelas que visitei nos rincões pouco visitados do Brasil. Sinal que não estava diante de meras similaridades, mas dos processos precários de reprodução material da modernidade, que se dão mais ou menos do mesmo modo.
     Não sei se o pensamento que tive foram relevantes para o desenrolar dos acontecimentos ali. Algo, porém, não duvido da relevância. Horas antes o vilarejo já estava em polvorosa, a final do campeonato carioca de futebol exaltou os ânimos de flamenguistas e vascaínos. Assistindo ao jogo em um dos pequenos bares que havia por ali, pessoas gritavam até ficar roucas, apostas estavam em jogo e as provocações eram recíprocas. Isso tudo, regado a muita cachaça e cerveja e somado ao estridente e excitante som dos auto-falantes da picape - que chegou logo após o fim do jogo - ajudou a criar aquela atmosfera que já havia visto muitas vezes antes, propícia aos ensaios dos delírios humanos e que redundva em coisas como pancarias e assassinatos.
     É mesmo mais provável que os pensamentos que tive sobre estourar os auto-falantes e os fusíveis da picape tenham sido produto dessa violência que estava impregnado nos ares do lugar e que, é claro, encontrou correspondência também nas minhas entranhas. 
     A polícia chegou muito tempo depois - ouvi um garoto anunciá-los quando eu já estava sonolento dentro da barraca. Parece que dois ou três foram presos. 
     De manhã bem cedo, arrumei as coisas e parti. O vilarejo estava quieto. Acho que o cara da picape não vai voltar tão cedo por ali com seus auto-falantes estridentes. Boa coisa: garantia de sono tranquilo para os próximos andarilhos que passarem por ali nos próximos tempos.