30/09/2008

Tião e Dona Dirce

A comida não falta a um vira-lata. Sempre se arranja um troço ou outro pra comer, aqui ou ali, e sempre há os corações bondosos para nos preparar os banquetes de restos. Nada é mais saboroso do que os restos do açougue, mas para consegui-los é preciso astúcia. Não se deve chegar perto demais, senão se é enxotado. Deve-se manter uma distância segura, rondar pela área e aproximar-se no momento em que a clientela é pouca. Se açougueiro der mostras de estar bem-humorado, é só investir, caso contrário, o melhor é esquecer e voltar outro dia. Observar o açougueiro é fundamental, muitos deles não nos toleram, é preciso escolher uma alma gentil, coisa que transparece nos olhos do sujeito. Tião era uma desses açougueiros de alma gentil, sempre me dava uns bocados de carcaça, uns pedaços de carne prestes a estragar, nunca me enxotou do açougue, mas conta que eu nunca desrespeitei uma só regra de convivência, e conviver é saber medir distâncias, coisa precisa e capital para um vira-lata.

E tinha uma dona, a Dirce, que sempre passava por ali, como eu, quase todos os dias, comprando pequenos punhados de uma coisa ou outra (não gostava de carne congelada, preferia tudo sempre fresco, era sua justificativa), perfumada forte como a carne na assadeira, o mesmo sorriso assíduo do Tião, a mesma aparência limpa do açougue e o mesmo rebolado das galinhas mortas e congeladas. Dona Dirce era viúva de marido, Tião era viúvo de mãe. Os dois já se davam bem o suficiente para alongar os diálogos com as desimportâncias da conjuntura, o importante mesmo nunca esteve nem perto de ser evocado. Tião já havia discretamente feito algumas investidas, é verdade que palavras soltas fora do ponto, mas com pistas suficientes para apontar o evidente dos seus desejos, mas Dona Dirce era sempre evasiva, assim como foram os anos para ela. E o lenga-lenga se estendia por longos meses, um ritual exaustivo que nada consumava. É certo que havia a alegria do encontro periódico que servia e a esperança de uma dia serem um par, mas a o prazo pra isso já tinha expirado faz tempo, a conquista já tinha vencido, estava passada e cheia de mofo, só servia de alimento aos sonhos meio raquíticos dos dois.

Tempos depois, outra dona passou a freqüentar o estabelecimento. O mesmo interesse, perfume, asseio, sorriso, um rebolado de galinha bem viva, além de mais audaz, mais fogosa e com mais carnes nas ancas. Tião se deixou levar pelos aromas fecundos da dona e passou a usar as mesmas peças e jogadas aprendidas no vai-não-vai com Dona Dirce. Depois de algumas semanas a nova dona já tinha convidado o Tião para um baile, com tanta falta de cerimônia que fizerem doer nos joelhos suas convicções de macho sedutor, espantado pelo êxito repentino e precoce de sua empreitada. Do convite até a noite do baile foram quatro dias doídos, já tinha esquecido como era efetivar a coisa que vem depois do galanteio, tinha se tornado um artífice capacitado pra só uma etapa da produção do amor, colocá-lo em outra função era bancarrota certa! Eu notei isso muito bem, porque me doeu no estômago, essa sua ansiedade o fez esquecer a minha existência, das vezes que lembrou, me deu alguns ossos de mal grado, nem me chamou de “rapaz” e nem me coçou o pêlo, tinha a cara bruta e os gestos duros.

Eu tinha todo o interesse naquele baile, não perderia por nada, porque sempre sobram uns restos de forra-bucho e eu queria ver como Tião ia fazer pra se virar com a outra dona.
Cheguei lá sem perfume sem nada. A barriga ainda um pouco roncando pelas privações dos dias anteriores, mas de tanto que me dão comida, até gostei de lembrar o que é sentir fome. Não foi difícil entrar, o negócio é chegar na hora que o lugar está lotado, porque daí posso me cobrir entre pernas, ganhar afagos discretos e comer coisas que deixam cair no chão.

O baile era de comemoração dos anos de sei lá quem, mas um sei-lá-quem que era amigo de Dona Dirce. Ela parecia ter chegado um pouco depois de mim. O trama tava ficando mais interessante do que pensei! O Tião estava às voltas com a senhorita do quadril largo, suas bochechas gordas estavam bem vermelhas, pela cerveja e pelo acanhamento, sua calva estava especialmente lustrosa sob as luzes fortes do salão. E eu comendo, um olho no belisco, o outro no Tião e, se tivesse um terceiro, estaria na Dona Dirce. Se ele pensou que beber invocaria a mesma segurança com que costuma partir a carne dos bichos... errou bem errado, ele antes parecia um galo desajeitado arrastando sua inconveniência pra cima duma galinha indisposta pro coito. Talvez até poderia pensar em tirar algum proveito da cabrocha se conseguisse centrar a cabeça nos seus galanteios envelhecidos e se conseguisse controlar seus trejeitos cagüetas do arrocho de esganar lombriga que sentia nas tripas. Conseguiu perder o que estava ganho, pensou em Dona Dirce certamente, com quem deveria estar, e não com aquela filha de mula (quem perde o jogo maldiz o vencedor!).

Eu voltei a encontrar Dona Dirce no meio do cardume de gente, percebi que ela estava só, de soslaio no Tião, bebendo mais do que deveria, menos do que necessário para afogar seus ciúmes. Se o que eu via era um aparvalhado somando mais fracassos a sua coleção, ela, com as vistas invertidas, via um encanto de homem, um sedutor charmoso com mais uma vítima abatida aos pés; a outra dona ela nem conseguia enxergar direito, era um satanás torto e fedorento. “Sabia que não devia confiar nele” – deixou escapar a expressão de limão chupado da Dona Dirce, conclusão final de uma reflexão curtida em meses de hesitação, findou-se o vou-não-vou com um não-fui-ainda-bem-porque-o-desgraçado-é-um-canalha-exclamação. Evidente que a Dona Dirce foi embora dali a pouco. Evidente que a outra dona deu um perdido no Tião e se escafedeu. Evidente que Tião bebeu até ir embora tropeçando nos relevos e nas angústias seguindo pelo caminho errado, pensei em guiá-lo, mas não sabia onde ficava sua casa. Eu saí de lá mais pesado, nem fiz questão de ir muito longe pra caçar onde deitar e dormir, caí no primeiro gramado que encontrei.Nos dias que se seguiram sofreram Dona Dirce, Tião e eu. As visitas na Dona Dirce rarearam. Ela até poderia ir ao açougue do japonês, que, aliás, ficava mais perto da sua casa, mas ela queria mostrar toda sua frieza, sua impavidez de obelisco, a austeridade que quem suprime o amor que um dia sentiu por Tião... e que continuava sentindo. A outra dona sei lá por onde andou depois daquilo, é certo que longe do açougue. Quanto a mim, cessaram os zelos do Tião. Tive que procurar outro açougue, tarefa difícil. Mas a vida é assim mesmo, do amor e do açougue, nunca se consegue sair sempre com alguma coisa suculenta

16/09/2008

Soleira

... receio que a próxima coisa que pode me acontecer,
o próximo evento reservado a mim pela natureza de existir...
seja a morte

Quem dá os passos pelas beiras
sente o que é cair, ainda que não caia

Antes a morte viesse sem sobreaviso
sem anunciação...
sem mostrar a cara vez ou outra
como ela tem feito comigo
Antes a morte viesse como um estalo de dedos
“Plec! Um a menos!”
“O que aconteceu?”
“Vai saber...”
assim, sem se deixar perceber
quieta, sorrateira... inexistente
Mas como a refeição que desprende seus aromas,
ela também deixa os seus no ar
o medo, o apavoro...
e este meu receio

E próximo passo depois de pensar na morte:
pensar na vida...

O que tenho feito de mim?
ou... o que o Alheio tem feito de mim?
(talvez um monte de tralha acumulada
porcarias largadas pelos anos que passam)
úteis até... não fosse a bagunça de tudo
... cada vez mais difícil de distinguir
as partes espalhadas (como se juntam?)

Minha vida tem acontecido mais entre parênteses

Tudo mundo morre, disso eu sei
(é justamente por saber!)
E é saber que me faz recear (evitar como?)
E pra que querer viver muito?
Que há de bom em viver muito?
Pra conseguir chegar onde se deve chegar?
(Mesmo que não se tenha idéia de onde é isso?)
Pra desfrutar mais das delícias de existir como ente corpóreo?
Isso faria muito sentido!
E por que razão não estão todos com cara de deliciados?
Talvez prefiram a contracapa dolorida
Enquanto se busca o tempo para que o outro lado possa ser vivido
Delícias em projeções, projeções, projeções...
Não acaba nunca? Deliciar-se é uma questão de tempo?

Viver pra viver os mesmos prazeres?... E até estes não cansam?
Já me cansei de tantos prazeres, e quando eu me cansar de todos?
Mas aí se se renovam, não se fica preso num círculo de desejo-satisfação?
Um círculo que não termina nunca e acaba-se por morrer frustrado?

Viver muito? Pra quê?
A vida que é muita não é uma vida de muitos prazeres adiados?
Há também os prazeres novos, que nunca sabemos que existem até que os vivenciamos
E há aqueles que sabemos que existem e talvez vamos gostar ou não deles
Daí faria sentido viver muito
Mas então nunca viveríamos o suficiente para viver todos os prazeres
e daí morreríamos frustrados?
É verdade que levei bastante tempo para gostar da chuva
Talvez com o tempo, eu não poderia gostar de tudo que existe?
...
Mas também é verdade que levei quase o mesmo tempo para detestar o barulho dos homens
Daí eu vou gostando e detestando as coisas ao infinito?
Quando acaba? Não acaba?

...a reflexão hedonista parece um poço sem fundo
prazeres, prazeres, prazeres...
“A vida não é só prazer!” – aponta alguém!
Quem disse isso?
Foi você, frade?
Você, freira?
Um asceta? Só pode ser um asceta! Mostre a cara!
Foi você, moderado? Alquimista que fica misturando dor e prazer calculadamente dosados?
Quem foi? Levante-se!
Foi você, criatura amedrontada pelos suplícios do Inferno?
Diga o que há de bom além do prazer!
Questione o prazer!
Mostre o além-explícito!
Mas faça alguma coisa!

Por que temer a morte?
Por que exaltar a vida?
Pra quê pensar nas duas?

E quantos não existem para, a esta reflexão, afirmar em bom tom:
“Pare de pensar nisso! Isso não leva a nada!”
E suas poupanças vão enchendo com os receios do futuro
E vão se cagando toda vez que a morte lhe sopra no ouvido!

A morte é o troço que está longe lá na frente
Mas apenas um passo atrás do nosso
Um só deslize e ela passa a rasteira

“Pare de pensar nisso e vá viver mais!”
A é? E começo por onde?
Com qual idiotice? Há tantas!
Simplesmente comendo umas castanhas?
Ou comendo o fígado dos meus irmãos macacos?
Dormindo até que me doam os ossos e músculos?
Montando nas fêmeas sem temor dos tabefes?
Fazendo estripulias até ter o corpo ser trucidado pela ira das normas?

Viver por um ideal?
Minha vida tem sido o descarte de todos ideais
geração de lixo e lixo e lixo e lixo
Já agora não me resta quase nenhum
a cada dia tenho jogado fora um convencimento
Talvez um dia me reste um corpo nu de tudo
a não ser pela tolice, que deve ser o carbono da alma

Viver por essas questões?
Ou suprimir as questões?
Torná-las boçais e baldias?
Mas é que elas me vêm na cabeça como fruta podre que cai da árvore
... e eu não consigo conter o fascínio pela arte de bater as botas
Que maravilha não se esconde do outro lado?
...
Mas é verdade que é igual meu fascínio pela vida
Pela vibração das cores no meio do verde monótono
Pela capacidade das coisas de serem o que são
Pelo movimento dos meus dedos
que à vezes fico observando abismado na frente da minha cara
e pelo o que não sei o que é...
e eu não sei o que são ambas
nem a vida
nem a morte

Fui um fracasso em estabelecer qualquer filosofia
que servisse de justificativa para o que faço
mesmo uma qualquer porcaria simplista
Nem corro, nem caminho
porque não aprendi nenhum dos dois
não vejo nenhuma trilha porque há muitas
tudo é trilha
e vou aos tropeços, porque sou fraco e hesitante
quando me canso olho para as copas das árvores
e me deslumbro
toda vez
com a luz que entra pelos espaços entre folhas
querendo perceber o imperceptível
ver o invisível
sentir o extra-sensorial
(por que não se revela de uma vez)
Quietação e euforia vão se revezando
na tarefa de moer as carnes do meu coração

Viver até Deus...
?

...

Minha vida tem sido mais reticências que tudo

Sei lá eu!
(essa é sempre minha conclusão de tudo)
E a essa falta de certeza, dou a minha boca calada.
Fazer o quê?
Se não há sentido exprimível para nada...

Então...
Se eu morrer como tenho receado
Se alguém se der ao trabalho de me enterrar
E se alguém tiver a ousadia de me lacrar o túmulo com uma lápide
Escrevam nela a mais sincera mensagem deste macaco
o epitáfio mais verdadeiro que se poderia fazer a meu respeito:

Morreu, morreu. Já era!
...