A comida não falta a um vira-lata. Sempre se arranja um troço ou outro pra comer, aqui ou ali, e sempre há os corações bondosos para nos preparar os banquetes de restos. Nada é mais saboroso do que os restos do açougue, mas para consegui-los é preciso astúcia. Não se deve chegar perto demais, senão se é enxotado. Deve-se manter uma distância segura, rondar pela área e aproximar-se no momento em que a clientela é pouca. Se açougueiro der mostras de estar bem-humorado, é só investir, caso contrário, o melhor é esquecer e voltar outro dia. Observar o açougueiro é fundamental, muitos deles não nos toleram, é preciso escolher uma alma gentil, coisa que transparece nos olhos do sujeito. Tião era uma desses açougueiros de alma gentil, sempre me dava uns bocados de carcaça, uns pedaços de carne prestes a estragar, nunca me enxotou do açougue, mas conta que eu nunca desrespeitei uma só regra de convivência, e conviver é saber medir distâncias, coisa precisa e capital para um vira-lata.
E tinha uma dona, a Dirce, que sempre passava por ali, como eu, quase todos os dias, comprando pequenos punhados de uma coisa ou outra (não gostava de carne congelada, preferia tudo sempre fresco, era sua justificativa), perfumada forte como a carne na assadeira, o mesmo sorriso assíduo do Tião, a mesma aparência limpa do açougue e o mesmo rebolado das galinhas mortas e congeladas. Dona Dirce era viúva de marido, Tião era viúvo de mãe. Os dois já se davam bem o suficiente para alongar os diálogos com as desimportâncias da conjuntura, o importante mesmo nunca esteve nem perto de ser evocado. Tião já havia discretamente feito algumas investidas, é verdade que palavras soltas fora do ponto, mas com pistas suficientes para apontar o evidente dos seus desejos, mas Dona Dirce era sempre evasiva, assim como foram os anos para ela. E o lenga-lenga se estendia por longos meses, um ritual exaustivo que nada consumava. É certo que havia a alegria do encontro periódico que servia e a esperança de uma dia serem um par, mas a o prazo pra isso já tinha expirado faz tempo, a conquista já tinha vencido, estava passada e cheia de mofo, só servia de alimento aos sonhos meio raquíticos dos dois.
Tempos depois, outra dona passou a freqüentar o estabelecimento. O mesmo interesse, perfume, asseio, sorriso, um rebolado de galinha bem viva, além de mais audaz, mais fogosa e com mais carnes nas ancas. Tião se deixou levar pelos aromas fecundos da dona e passou a usar as mesmas peças e jogadas aprendidas no vai-não-vai com Dona Dirce. Depois de algumas semanas a nova dona já tinha convidado o Tião para um baile, com tanta falta de cerimônia que fizerem doer nos joelhos suas convicções de macho sedutor, espantado pelo êxito repentino e precoce de sua empreitada. Do convite até a noite do baile foram quatro dias doídos, já tinha esquecido como era efetivar a coisa que vem depois do galanteio, tinha se tornado um artífice capacitado pra só uma etapa da produção do amor, colocá-lo em outra função era bancarrota certa! Eu notei isso muito bem, porque me doeu no estômago, essa sua ansiedade o fez esquecer a minha existência, das vezes que lembrou, me deu alguns ossos de mal grado, nem me chamou de “rapaz” e nem me coçou o pêlo, tinha a cara bruta e os gestos duros.
Eu tinha todo o interesse naquele baile, não perderia por nada, porque sempre sobram uns restos de forra-bucho e eu queria ver como Tião ia fazer pra se virar com a outra dona.
Cheguei lá sem perfume sem nada. A barriga ainda um pouco roncando pelas privações dos dias anteriores, mas de tanto que me dão comida, até gostei de lembrar o que é sentir fome. Não foi difícil entrar, o negócio é chegar na hora que o lugar está lotado, porque daí posso me cobrir entre pernas, ganhar afagos discretos e comer coisas que deixam cair no chão.
O baile era de comemoração dos anos de sei lá quem, mas um sei-lá-quem que era amigo de Dona Dirce. Ela parecia ter chegado um pouco depois de mim. O trama tava ficando mais interessante do que pensei! O Tião estava às voltas com a senhorita do quadril largo, suas bochechas gordas estavam bem vermelhas, pela cerveja e pelo acanhamento, sua calva estava especialmente lustrosa sob as luzes fortes do salão. E eu comendo, um olho no belisco, o outro no Tião e, se tivesse um terceiro, estaria na Dona Dirce. Se ele pensou que beber invocaria a mesma segurança com que costuma partir a carne dos bichos... errou bem errado, ele antes parecia um galo desajeitado arrastando sua inconveniência pra cima duma galinha indisposta pro coito. Talvez até poderia pensar em tirar algum proveito da cabrocha se conseguisse centrar a cabeça nos seus galanteios envelhecidos e se conseguisse controlar seus trejeitos cagüetas do arrocho de esganar lombriga que sentia nas tripas. Conseguiu perder o que estava ganho, pensou em Dona Dirce certamente, com quem deveria estar, e não com aquela filha de mula (quem perde o jogo maldiz o vencedor!).
Eu voltei a encontrar Dona Dirce no meio do cardume de gente, percebi que ela estava só, de soslaio no Tião, bebendo mais do que deveria, menos do que necessário para afogar seus ciúmes. Se o que eu via era um aparvalhado somando mais fracassos a sua coleção, ela, com as vistas invertidas, via um encanto de homem, um sedutor charmoso com mais uma vítima abatida aos pés; a outra dona ela nem conseguia enxergar direito, era um satanás torto e fedorento. “Sabia que não devia confiar nele” – deixou escapar a expressão de limão chupado da Dona Dirce, conclusão final de uma reflexão curtida em meses de hesitação, findou-se o vou-não-vou com um não-fui-ainda-bem-porque-o-desgraçado-é-um-canalha-exclamação. Evidente que a Dona Dirce foi embora dali a pouco. Evidente que a outra dona deu um perdido no Tião e se escafedeu. Evidente que Tião bebeu até ir embora tropeçando nos relevos e nas angústias seguindo pelo caminho errado, pensei em guiá-lo, mas não sabia onde ficava sua casa. Eu saí de lá mais pesado, nem fiz questão de ir muito longe pra caçar onde deitar e dormir, caí no primeiro gramado que encontrei.Nos dias que se seguiram sofreram Dona Dirce, Tião e eu. As visitas na Dona Dirce rarearam. Ela até poderia ir ao açougue do japonês, que, aliás, ficava mais perto da sua casa, mas ela queria mostrar toda sua frieza, sua impavidez de obelisco, a austeridade que quem suprime o amor que um dia sentiu por Tião... e que continuava sentindo. A outra dona sei lá por onde andou depois daquilo, é certo que longe do açougue. Quanto a mim, cessaram os zelos do Tião. Tive que procurar outro açougue, tarefa difícil. Mas a vida é assim mesmo, do amor e do açougue, nunca se consegue sair sempre com alguma coisa suculenta