24/03/2008

A tempestade

Quando a tempestade se aproxima, eu me retiro para o galho alto da castanheira e espero como um amante eufórico. A tempestade tem cheiro de morte trágica, ela é um pequenino apocalipse que acalma temporariamente minha alma ansiosa pela renovação. É a transição abrupta que não acontece a não ser em sentimento efêmero e ilusório. A felicidade que me faz sorrir vendo os turbilhões da tempestade não se dá senão pela perspectiva da destruição iminente de mim e de tudo que existe. O tempo se comprime no instante em que se vive e eu sinto a necessidade de um último perdão pelo que eu tenha feito de errado por ser uma criatura tola. Aqueles que amo aparecem como que dotados de vida diante de mim, tão forte é o sentimento que rompe com truculência o meu peito. Sinto que os fragmentos do que tentei inutilmente construir de mim serão finalmente carregados com a água para o infinito de um oceano distante, profundo e de tal maneira imenso que será um convite para se perder irreversivelmente. A tempestade que vem e passa é o ceifador que vem e não ceifa. A tempestade que a tudo envolve em sua movimentação frenética desperta o meu desejo de ser partido ao meio pelos raios e ser arrebatado para o mundo de lampejos que é o interior das tormentas. Quando se vai, abandona uma calmaria de tal forma asfixiante que sufoca os deuses da ira acordados pelos trovões e não deixa outra coisa senão uma tempestade irrefreável dentro dos meus sonhos sem forma e um grito aterrador transformado no milagre das lágrimas.

19/03/2008

O sapato

Eu costumava andar observando os pássaros voadores voando no vento azul do céu. Eu olhava o sol e me admirava. Às vezes ele me cegava e eu via uma mancha preta nas coisas. A mancha era bonita e brilhava com o piscar dos meus olhos. Eu olhava e tropeçava. Às vezes caía. Eu costumava assobiar para fazer o ar dançar no meu ouvido e andar até ficar perdido e ficar dolorido o meu pé. Um dia me alertaram sobre a cor do meu sapato e num outro sobre sua condição. E a cada dia me alertaram sobre um aspecto diferente: cadarço, costura, sola, sujeira, e assim ia indo. Foi na vez que eu encostei o queixo no peito que eu vi meu sapato, daí passei três dias e três noites observando. Quando terminei de observar, cocei minha orelha e comprei um sapato novo. Hoje eu tenho um sapato bonito e sou feliz. Meu queixo anda perto do meu peito. Minha orelha não coça mais e eu vejo o sol brilhando no meu sapato lustrado.

07/03/2008

Sarna

O que eu acho agora
me pergunte de novo se eu acho amanhã
porque eu não sei
pelo que vou me aficcionar
qual filosofia vou trazer no bolso
qual corrente doutrinária vou apertar ao peito
depois que eu me der conta pela manhã
que rolaram para longe
as azeitonas do pote
que costumava carregar

As filhotas de capivara
me ignoram mais do que de costume
as goiabas maduras perscrutam
os segredos adormecidos nos cantos da mata
ando sem pisar nas folhas
pulo sem quebrar os galhos
para não acordar os deuses do pensamento

e o bode Adamastor
que come tudo que lhe aparece na frente
comeu também minhas utopias
depois que as joguei no barro da clareira

agora eu to meio pelado da alma
colhendo ervas mágicas
e utopias maduras
pra tentar curar
a sarna que me coça no lombo