03/05/2011

Num vilarejo de Roraima

     Do diário de bordo
Em Iracema (RR)

     Já era noite no vilarejo de Petrolina, às margens da BR-174 em Roraima. Eu estava acampado na varanda da sede da Associação de Moradores, lugar, aliás, que era abrigo de uma cão vira-lata que fugiu quando entrei ali. Apesar do cansaço não conseguia dormir, do outro lado da rodovia uma picape com quatro grande caixas com auto-falantes na traseira ensurdecia a todos do vilarejo tocando músicas de todo gênero. Em volta da picape tinha se formado um pequeno grupo de beberrões que só podiam conversar aos berros. Depois de duas horas, aquilo já estava se tornando um suplício - talvez não só para mim. Eu não fazia mais que esperar deitado dentro da barraca o fim daquilo para que eu pudesse dormir. Mas foi aé que me passou uma idéia pela cabeça, algo do qual já tinha ouvido falar bastatnte: usar a força do pensamento para acabar com o barulho. Dizem certos místicos e esoteristas que um pensamento, dependendo da vontade em que se é empregada nele, pode se efetivar e transformar as coisas no plano físico. Foi isso que fiz, e sabendo o que queria - o silêncio - me vi comicamente maquinando com a mente como isso deveria acontecer. Primeiro pensei ser interessante que os auto-falantes estourassem, mas refleti e julguei que isso seria algo muito violento. Então pensei em algo menor, como a queima de um dos fusíveis do carro, mas ainda isso me pareceu inadequado. Por último me ocorreu mandar mensagens para o dono do carro pedindo que ele abaixasse o volume. Fiquei insistindo na transmissão e, incrivelmente, minutos depois, o som foi desligado. Antes, poré, que eu pudesse comemorar o feito extraordinário, surgiu uma algazarra ali perto. 
     Homens começaram a discutir, depois mulheres gritavam desesperadamente. Saí da barraca para ver o que se passava. Vi que há uns 50 metros homens trocavam sopapos e empurrões, enquanto outros tentavam apartá-los. No meio da pancadaria, alguns tentaram fugir de carro, mas como a ignição estava possivelmente com problemas, tiveram que empurrá-lo  entre a multidão confusa. O cenário era cômico e trágico.
     O dono da picape com os auto-falantes enormes também resolveu se mandar dali. Saiu às pressas, entrou no carro e acelerou fundo. Por pouco os auto-falantes não despencaram da traseira do carro. Talvez, se tivesse insistido mais no pensamento de estourar os auto-falantes, eles teriam caído naquele instante - foi o que pensei sarcasticamente naquele instante.
     A confusão se desenrolou ainda por algum tempo, com direito a golpes de facão, cadeiras e mesas voadoras. Com outros dois curiosos que apareceram ali onde eu estava, conversávamos sobre a pancadaria como comentaristas esportivos. Isso me fez recordar a minha infância pelas periferias de São Paulo, quando vez ou outra assistia, de cima da laje da casa dos meus pais, a brigas, tiroteios e perseguições policiais. A cena era familiar e a paisagem não era muito diferente daquela do bairro onde cresci e de tantas outras currutelas que visitei nos rincões pouco visitados do Brasil. Sinal que não estava diante de meras similaridades, mas dos processos precários de reprodução material da modernidade, que se dão mais ou menos do mesmo modo.
     Não sei se o pensamento que tive foram relevantes para o desenrolar dos acontecimentos ali. Algo, porém, não duvido da relevância. Horas antes o vilarejo já estava em polvorosa, a final do campeonato carioca de futebol exaltou os ânimos de flamenguistas e vascaínos. Assistindo ao jogo em um dos pequenos bares que havia por ali, pessoas gritavam até ficar roucas, apostas estavam em jogo e as provocações eram recíprocas. Isso tudo, regado a muita cachaça e cerveja e somado ao estridente e excitante som dos auto-falantes da picape - que chegou logo após o fim do jogo - ajudou a criar aquela atmosfera que já havia visto muitas vezes antes, propícia aos ensaios dos delírios humanos e que redundva em coisas como pancarias e assassinatos.
     É mesmo mais provável que os pensamentos que tive sobre estourar os auto-falantes e os fusíveis da picape tenham sido produto dessa violência que estava impregnado nos ares do lugar e que, é claro, encontrou correspondência também nas minhas entranhas. 
     A polícia chegou muito tempo depois - ouvi um garoto anunciá-los quando eu já estava sonolento dentro da barraca. Parece que dois ou três foram presos. 
     De manhã bem cedo, arrumei as coisas e parti. O vilarejo estava quieto. Acho que o cara da picape não vai voltar tão cedo por ali com seus auto-falantes estridentes. Boa coisa: garantia de sono tranquilo para os próximos andarilhos que passarem por ali nos próximos tempos.

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