17/06/2011

Em busca de um ser feliz


     Existe uma lista de cerca de dez perguntas que sempre me fazem quando estou viajando por aí com a bicicleta. Já as respondi tantas vezes que, quando fui entrevistado por uma repórter de uma TV local de Rondônia, sentia como se estivesse recitando trechos de um roteiro ensaiado muitas vezes. 
     Por algum motivo estranho –  de acordo, porém, com os enredos irônicos do universo -, a pergunta que mais respondo é “E quando fura o pneu, o que você faz?”. Puxa, eu que cheguei a ter pretensões de que, com o modo de colocar no mundo, pudesse levar meus irmãos de raça (humana) e de condição (estarmos aqui no mesmo planeta no mesmo tempo) a uma reflexão sobre nossos hábitos, apegos, ideais, perspectivas, por fim acabo vendo-os mais interessados pelos furos nos pneus do que pelas motivações (doravante bobagens) que me lançaram no mundo dessa maneira.
      Alguns poucos se aventuram para além das perguntas que sempre começam com “e”:
- E como você faz para dormir? (Eu deito.)
- E como você se sustenta? (Com as pernas.)
- E seus pais? (Vão bem, e os seus?)
- E quando chove? (Molha.)
- E o que você come? (Vamos voltar a falar da chuva?)
     Esses poucos perguntam sobre as razões de eu levar a vida dessa maneira. Geralmente eu tenho que começar convencendo-os de que não sofri uma desilusão amorosa, pois sempre sugerem isso a princípio – não por acaso, eu mesmo já encontrei muitos homens vagando pelas estradas por esse motivo.  Depois disso, sim, podemos conversar sobre aqueles temas que mencionei anteriormente, mas não é raro que a essa altura da conversa eu já esteja cansado de falar ou meu interlocutor esteja querendo voltar a falar de temas como furos em pneus de bicicleta. Então encerro o diálogo dizendo que preciso me ausentar para fazer algo como dar água para os peixes ou gelo para os pingüins.
     Às vezes acontece de encontrar alguém com quem possa explorar mais profundamente os desígnios da alma humana e levantar algumas questões sobre a nossa breve e divertida existência terrena. É claro que raramente isso leva a conclusões objetivas ou a descobertas dignas de publicação nos anais científicos, mas, por algum motivo estranho –  de acordo, porém, com os enredos sagazes do universo –, saímos da conversa transformados, e talvez seja isso o fato relevante.
     Até agora não escrevi claramente sobre o propósito dessa viagem e da vida que resolvi levar, e nem poderia, pois se a transformação é o fato relevante, como seria possível garantir uma explicação mais ou menos perene que satisfizesse as almas mais interrogativas? Em outras palavras, o propósito muda com o passo, ou, nesse caso, com a pedalada.
     Além disso, tenho preferido o vivido ao explicado, ou seja, quem quiser saber como é viver assim, que faça o mesmo. Mas isso não me isenta de explicações, e também dizer “faça o mesmo” pode soar como provocação rude. Melhor que explicar, entretanto, é fuçar na mente e no coração de quem me questiona para ver se encontro algo que nos permita brincar com a existência, explorando diferentes caminhos para se chegar a um ponto essencial: aquele para além do qual não pudermos ir, ou por falta de algum preparo ou por uma limitação do gênero humano. Os instrutores que mais admirei foram aqueles que extrapolaram os limites e me mostraram mundos possíveis até então impossíveis para mim.
     Apesar disso, recentemente parece que encontrei uma resposta para aqueles que perguntarem sobre o propósito desta vida que levo. Da próxima vez que me perguntarem por que ando pelo mundo desse jeito, não direi mais que “ando porque é sólido, se líquido fosse, nadá-lo-ia”, agora vou responder “estou procurando por um ser feliz que talvez possa me ensinar algo sobre viver, por acaso seria você?”.
     E por acaso seria você que está lendo isso?  

16/05/2011

Mas você come o quê?

Do diário de bordo
Em Boa Vista (RR)
    

     "Mas você come o quê", é a pergunta que respondo, entre tantas outras, tenho que responder mais ou menos todos os dias, seja quando vou me alimentar num restaurante ou como convidado na casa de alguém. É comum isso acontecer com os vegetarianos. Comigo, quase sempre há um diálogo explicativo - e muitas vezes longo - sobre minha dieta antes de cada refeição.

    Apenas dizer a uma pessoa que se é vegetariano não resume muito, pois não é raro que a isso se sigam perguntas como "Você só come salada?" ou "E peixe, você come?". Também não adianta apenas dizer que não como carne, pois depois disso é normal oferecerem frango, peixe ou porco, já que muitos têm a palavra "carne" como sinônimo de carne de boi. A frase que mais tenho usado para resumir minha dieta é: "Eu não como bichos" ou "Como tudo menos os bichos". Estas têm sido as mais eficientes para se fazer entender, embora elas não assegurem que o feijão virá sem bacon ou toucinho.

     Seria mais fácil apenas pedir um prato de arroz, feijão e salada – em geral a única opção vegetariana na estrada – mas é mais provável que isso leve a pessoa a pensar que eu seria um pobre coitado que estaria sem dinheiro para comprar um prato com carne, ou que, no caso de ter sido convidado para a refeição, estaria sendo excessivamente humilde. O resultado poderia ser justamente o inverso do esperado: que o prato viesse com uma grande porção de carne, como demonstração da generosidade daquele que serve a refeição.

     Por isso tudo é que há sempre um diálogo explicativo antes de cada refeição – e às vezes durante e depois – para que se entenda o que como e o que deixo de comer. Normalmente, essa postura causa estranhamento, porque não há muito vegetarianos andando pelas estradas e interiores do Brasil, muito menos de bicicleta. Para muitos eu fui o primeiro vegetariano que conheceram, por isso é comum que me olhem com interrogação nos olhos. Alguns até ousam perguntar o porquê dessa escolha, e é aí que o diálogo pode se estender, o que é muito bom, porque daí surge uma reflexão sobre os hábitos alimentares que, para minha surpresa, às vezes acaba por fazer com que alguns resolvam mudar esses hábitos.

     Foi isso que aconteceu dias atrás quando eu fui acampar na orla do Rio Branco, na cidade de Iracema, em Roraima. Tinha pedalado todo o dia e já era hora de descansar. No restaurante que fica na orla, estavam três homens que me convidaram para comer uma peixada – a bicicleta carregada de tralhas e as roupas sujas parecem avisar “viajante faminto”. Agradeci dizendo que eu só comia vegetais, naturalmente eles pareceram estranhar e fizeram comentários entre si, mas depois disse que aceitaria um pouco de arroz, caso houvesse, pois seria um bom acompanhamento para a seleta de legumes e milho que trazia comigo. Sentei-me com eles, e como de costume, fizeram muitas perguntas sobre a viagem, mas um deles parecia mais interessado nos meus hábitos alimentares. A certa altura da conversa, subitamente, ele decidiu que mudaria sua dieta a partir do dia seguinte, pediu papel e caneta para a atendente do restaurante e começou a compor a nova dieta com base no que eu lhe dizia. Falei-lhe sobre alimentos que ele sequer conhecia, mesmo apesar de não muito raros, como aveia e linhaça. Ao final de alguns instantes ele tinha uma lista do que comer pela manhã, no almoço e no jantar, tudo essencialmente vegetariano. Não recomendei que ele abolisse a carne de uma vez, porque, em geral, radicalismos assim não levam à incorporação de hábitos duradouros, embora tenha sido justamente assim, radicalmente, que deixei de comer carne.

     Depois disso, ainda conversamos muito. Um deles me perguntou se contava com apoio de prefeitos por onde passava, respondi que não buscava esse tipo de apoio, então ele disse:

- Agora você já pode dizer que conheceu o prefeito de Iracema

- Você é o prefeito? – perguntei um pouco surpreso.

- Não, é ele. – e apontou para o homem que tinha acabado de reformular sua dieta.

     Por causa disso discutimos longamente sobre política, governo e gestão pública. Depois, ainda nos divertimos com algumas brincadeiras e truques de mágica com algumas crianças que estavam por ali.

...

     Lembro de um senhor vegetariano que, cansado de ter que sempre explicar a razão pela qual não comia animais, simplesmente começou a mentir dizendo que se tratava de recomendação médica, explicação que de pronto conta com a compreensão alheia. Ele também fazia chacota, dizendo que não comia carne para que sua bunda ficasse mais bonita, talvez supondo que a vaidade seja mais compreensível do que uma postura ética em favor da vida e liberdade dos animais.

     Ainda não me cansei de dar explicações sobre esse assunto, embora saiba que a maioria de nós pouco se importa com o assassinato e humilhação dos animais e que sequer considera esses seres como expressão da vida, da qual não deveriam ser privados de modo tão banal. Contudo, encontrei muitos já convencidos de que não deveriam mais comer carne, mas que simplesmente não conseguiam se livrar desse hábito, talvez pelos argumentos mais fortes do apetite ou talvez pelas amarras disso que chamamos de cultura, coisa que reproduzimos sem saber a razão.

     Não acho que o vegetarianismo seja um tema isolado, que diga respeito somente ao hábito alimentar em relação à saúde corpórea. Sem dúvida ela é mais saudável e pode, ao contrário do que muitos pensam, sustentar ao esforço necessário para pedalar 70 ou 100 km por dias, como tenho feito. Mas isso não é o fundamental. O vegetarianismo é, antes de qualquer outra coisa, uma decisão ética e, para muitos, um princípio espiritual, que se relaciona com a perpetuação da vida desta humanidade e deste planeta.

     Não costumo fazer militância por essa causa, mas não me importo de estragar a refeição de alguém se, durante o jantar, for perguntado o porquê do vegetarianismo e eu tiver que evocar algumas imagens horripilantes sobre o processo que foi necessário para trazer um pedaço de cadáver até o prato desse alguém. Afinal, não tem nada de mais nisso, é apenas a realidade, além disso, eu estaria apenas respondendo à pergunta do modo razoavelmente sincero. Contudo, evitar conflitos é a máxima para um desterrado, sempre é preferível o silêncio do que uma cutucada. Estar com a boca cheia de vegetais doados pela terra ao invés da carne arrancada contra a vontade dos bichos é algo muito bom, melhor ainda é estar com boca calada.

03/05/2011

Num vilarejo de Roraima

     Do diário de bordo
Em Iracema (RR)

     Já era noite no vilarejo de Petrolina, às margens da BR-174 em Roraima. Eu estava acampado na varanda da sede da Associação de Moradores, lugar, aliás, que era abrigo de uma cão vira-lata que fugiu quando entrei ali. Apesar do cansaço não conseguia dormir, do outro lado da rodovia uma picape com quatro grande caixas com auto-falantes na traseira ensurdecia a todos do vilarejo tocando músicas de todo gênero. Em volta da picape tinha se formado um pequeno grupo de beberrões que só podiam conversar aos berros. Depois de duas horas, aquilo já estava se tornando um suplício - talvez não só para mim. Eu não fazia mais que esperar deitado dentro da barraca o fim daquilo para que eu pudesse dormir. Mas foi aé que me passou uma idéia pela cabeça, algo do qual já tinha ouvido falar bastatnte: usar a força do pensamento para acabar com o barulho. Dizem certos místicos e esoteristas que um pensamento, dependendo da vontade em que se é empregada nele, pode se efetivar e transformar as coisas no plano físico. Foi isso que fiz, e sabendo o que queria - o silêncio - me vi comicamente maquinando com a mente como isso deveria acontecer. Primeiro pensei ser interessante que os auto-falantes estourassem, mas refleti e julguei que isso seria algo muito violento. Então pensei em algo menor, como a queima de um dos fusíveis do carro, mas ainda isso me pareceu inadequado. Por último me ocorreu mandar mensagens para o dono do carro pedindo que ele abaixasse o volume. Fiquei insistindo na transmissão e, incrivelmente, minutos depois, o som foi desligado. Antes, poré, que eu pudesse comemorar o feito extraordinário, surgiu uma algazarra ali perto. 
     Homens começaram a discutir, depois mulheres gritavam desesperadamente. Saí da barraca para ver o que se passava. Vi que há uns 50 metros homens trocavam sopapos e empurrões, enquanto outros tentavam apartá-los. No meio da pancadaria, alguns tentaram fugir de carro, mas como a ignição estava possivelmente com problemas, tiveram que empurrá-lo  entre a multidão confusa. O cenário era cômico e trágico.
     O dono da picape com os auto-falantes enormes também resolveu se mandar dali. Saiu às pressas, entrou no carro e acelerou fundo. Por pouco os auto-falantes não despencaram da traseira do carro. Talvez, se tivesse insistido mais no pensamento de estourar os auto-falantes, eles teriam caído naquele instante - foi o que pensei sarcasticamente naquele instante.
     A confusão se desenrolou ainda por algum tempo, com direito a golpes de facão, cadeiras e mesas voadoras. Com outros dois curiosos que apareceram ali onde eu estava, conversávamos sobre a pancadaria como comentaristas esportivos. Isso me fez recordar a minha infância pelas periferias de São Paulo, quando vez ou outra assistia, de cima da laje da casa dos meus pais, a brigas, tiroteios e perseguições policiais. A cena era familiar e a paisagem não era muito diferente daquela do bairro onde cresci e de tantas outras currutelas que visitei nos rincões pouco visitados do Brasil. Sinal que não estava diante de meras similaridades, mas dos processos precários de reprodução material da modernidade, que se dão mais ou menos do mesmo modo.
     Não sei se o pensamento que tive foram relevantes para o desenrolar dos acontecimentos ali. Algo, porém, não duvido da relevância. Horas antes o vilarejo já estava em polvorosa, a final do campeonato carioca de futebol exaltou os ânimos de flamenguistas e vascaínos. Assistindo ao jogo em um dos pequenos bares que havia por ali, pessoas gritavam até ficar roucas, apostas estavam em jogo e as provocações eram recíprocas. Isso tudo, regado a muita cachaça e cerveja e somado ao estridente e excitante som dos auto-falantes da picape - que chegou logo após o fim do jogo - ajudou a criar aquela atmosfera que já havia visto muitas vezes antes, propícia aos ensaios dos delírios humanos e que redundva em coisas como pancarias e assassinatos.
     É mesmo mais provável que os pensamentos que tive sobre estourar os auto-falantes e os fusíveis da picape tenham sido produto dessa violência que estava impregnado nos ares do lugar e que, é claro, encontrou correspondência também nas minhas entranhas. 
     A polícia chegou muito tempo depois - ouvi um garoto anunciá-los quando eu já estava sonolento dentro da barraca. Parece que dois ou três foram presos. 
     De manhã bem cedo, arrumei as coisas e parti. O vilarejo estava quieto. Acho que o cara da picape não vai voltar tão cedo por ali com seus auto-falantes estridentes. Boa coisa: garantia de sono tranquilo para os próximos andarilhos que passarem por ali nos próximos tempos.

16/04/2011

A cidade que trouxe na bagagem

Do diário de bordo
Em Porto Velho (RO)
       Estava acorrentando a bicicleta nos ferros de uma grade, ao lado da igreja matriz, a qual tinha a intenção de visitar, quando o som das buzinas de carros à distante me trouxe um recordação. Foi de um instante na véspera do dia em que deixei São Paulo, há quase dois anos. Eu estava no apartamento de uma amiga, no quinto andar, contemplando a cidade pela janela ampla. O céu, como os edifícios, estava cinza, cor que ficava ainda ainda mais acentuado com o frio que fazia (era início de agosto). Lá de cima ouvia o som dos carros e suas buzinas, aquele mesmo que agora me transportava de Porto Velho para São Paulo. Ali de cima, longe das multidões, prestes a deixar aqueles lugar definitivamente, a metrópole já não parecia tão ameaçadora. 
       Eu que tinha passado os últimos tempos em constante embate frente à hostilidade daquele aglomerado de concreto, gente e metal, e temendo sua grandiosidade monstruosa, subitamente a observava de fora, pois estando prestes a deixá-la, era como se já não estivesse lá. Naqueles instante, sua monstruosidade parecia mais a careta de birra de um menino manhoso - nem hostil, nem ameaçadora, apenas ridicula e pouco relevante. As multidões, os veículos, os edifícios passavam a fazer parte de uma passado desimportante, como fitas VHS mofando num lugar esquecido da estante. A metrópole assim, destituída do poder que atribuíra a ela, mas que nunca chegou a ter, pude olhar para ela e, enfim, perdoá-la. 
      Nos momentos seguintes, ainda antes da partida, andando pelas ruas sem a usual pressa de chegar em algum lugar, cheguei até gostar dela. Estávamos inesperadamente nos reconciliando. Entretanto, mesmo diminuindo a distância abissal que havia entre nós, não poderia levar nada dali a lugar algum, para além dela uma nova vida estava nascendo, e, portanto, algo ali deveria morrer. 
      Deixei para ela apenas um pouco da muita gratidão que poderia ter deixado. Hoje, qualquer cidade, mesmo capitais como Porto Velho, Cuiabá e Brasília parecem pequenas e indefesas, frágeis como um irmão mais novo. Não assustam, apesar de mesmo assim eu as continuar evitando. Vejo as cidades sempre em relação à metrópole paulista. Não adiantou evitá-la, ela veio comigo.     

15/04/2011

Nota sobre a impermanência

Do diário de bordo
Em Porto Velho
Sim, tudo é provisório, nada é permanente. Não se conhece nada que tenha durado. Mas usando isso como argumento e impulso, vejo a mim próprio tornando provisórias as experiências que vivo e, assim, fazer com que possam assumir a condição de impermanentes. Se uma situação se prolonga por algum tempo, logo pergunto "Ei, você não vai acabar?". E, antes que ela possa me responder, me tranformo no agente que acaba com ela e logo me volto para outro rumo. Vivendo impermanência desse modo, por fim, tornei a mim mesmo num ser provisório. Só tenho aceitado viver uma experiência com a condição de que seja passageira, embora eu não saiba se essa seja uma condição do universo ou meu descomprometimento com o mundo. As coisas e os seres são como os brinquedos chineses: não foram feitos para durar. Se há algo de permanente nisso tudo, seria a única coisa pela qual valeria a pena viver, a única coisa digna de ser buscada. Talvez a eternidade são seja um tempo tão longo a ponto de não poder ser contado, mas apenas do tamanho de um instante. Este nunca acaba, pois é aquele que está sendo vivido, não começa e nem se acaba. É isso o infinito? Por que não?

28/03/2011

O poema que não consegui entregar


Do diário de bordo
Em Vilhena (RO)

Estava lá pelas bandas do Mato Grosso, num posto de gasolina, descansando um pouco, sentado ao lado da bicicleta e escrevendo algumas coisas do caderno. Dali a pouco apareceu uma moça, vinda lá de dentro do restaurante, com olhar curioso ela ficou olhando para a bicicleta procurando alguma coisa. Então olhou pra mim e perguntou se eu fazia artesanato, disse-lhe que não. Ela foi para dentro de novo, mas logo voltou, e vendo que eu estava escrevendo, perguntou-me se eu fazia versos, eu disse que sim e, então, ela me pediu que fizesse uns versos para ela.Como fazer um poema para alguém sobre a qual não se sabe muito? Bom, sabia que ela gostava de ver os artesanatos de quem passava ali no posto vendendo coisas do tipo, mas isso não era suficiente. Então, sem ter um tema muito bom, pedi que ela sentasse ao meu lado e lhe perguntei o que era importante para ela. "A paixão", foi o que ela me respondeu, fazendo uns gestos engraçados balançando as mãos, sentindo-se um pouco nervosa. Daí eu voltei a perguntar: 
- E o que é a paixão pra você?
Com os mesmos gestos engraçados, ela me respondeu: 
- Sei lá, não dá pra explicar!
- Mas a função da poesia é exatamente essa: dar palavras para um inexplicável - disse a ela tentando fazer com que ela me dissesse algo mais sobre aquilo que parecia muito importante para ela.
- Sei lá, o coração palpita, a mão fica suada... - eu estava quase conseguindo um tema...
- Que mais é importante pra você? - voltei a perguntar tentando garimpar aquela alma que estava ali sentada um pouco aflita.
- A alegria... a família - foi o que ela me respondeu, mas não foi tão intenso comoi quando ela me falou sobre a paixão.
Ela parecia apressada. De fato, ela me disse que tinha que servir o almoço para o avô, e então se foi, deixando para mim o tema a ser trabalhado e o seu nome "Andressa". Pronto, estava ali eu e a paixão em mais um confronto direto, frente a frente na arena dos versos. O que faria? Ao mesmo tempo em que queria agradar a moça - pois o pessoal do posto já ne havia feito a gentileza de oferecer um almoço - queria lhe falar que a paixão não era algo a que ela deveria se dedicar tão ardorosamente, que seria melhor transcender aquilo. Mas resolvi ser obediente, e tentar traduzir o que ela estava sentindo, sem  buscar transcender coisa alguma. Saiu algo mais ou menos assim:

Meu coração palpita
E sinto suar a mão
Não sei se estou aflita
Ou se derreto de paixão

Tem algo de mistério
Tem muito de saboroso
É um brincar de jogo sério
Morrer em mim, viver no outro

Há coisas que me fazem sorrir
E coisas que me fazem temer
Há coisas boas de sentir
E outras que não quero ver

Mas há algo que não sei explicar
Além da alegria e da tristeza
Quando ouço meu amor sussurrar
Em meu ouvi, meu nome: Andressa

Certo! Já tinha os versos. Não sei com foi a reação dela, porque não voltei a encontrá-la. Depois do almoço deixei o poema com o rapaz que ficava no caixa e segui viagem. Mas não fiquei satisfeito. Senti-me culpado exaltando a paixão daquele jeito. Nestas bandas de cá, ouve-se muita música sertaneja cujos temas variam entre festa, bebida, traição - vulgo chifre - e a famigerada paixão. E toda vez que ouço uma música em que o cantor se rasga de paixão dizendo coisas como "...é para sempre", "...nunca vou te deixar", "...você é a melhor de todas" só consigo pensar que estou ouvindo um monte de mentiras. Todos já sentimos isso, e sabemos que esse sentimento nos faz dizer as coisas mais estranhas. Ele é como um coquetel de euforia, alegria, tristeza, mais umas rodelinhas de medo e um canudinho para beber chamado desejo. Quando estamos sob efeito dele, queremos que ele dure para sempre, mas isso é como tentar ancorar as nuvens. É uma história que já conhecemos, mas repetimos sempre, tentanto fazer com que... bem... fazer com que a história se repita. Mas o que há além das reprises?
...
Enfim, se tivesse a oportunidade de me redimir da culpa de ter feito aquele poema para a moça, entregaria isso para ela:

Ter um foguete, mas o teto baixo
Ter a parreira, mas não ter o caixo
Ter a viola, mas não a canção
Ter a terra, mas não ter o grão

Ter a árvore, mas não o fruto
Ter o fruto que não está maduro
Ter o capim e faltar o cavalo
Ter o cavalo, mas não ter o pasto

Um periquito na escuridão
Um morcego, fora, no clarão
Um beija-flor sem velocidade
Uma velhice sem não ter idade

Ser um tatu que não faz buraco
Ser um buraco sem nada enterrado
Ser o defunto, mas faltar a cova
Ser quem morreu mas não foi embora

Ser a cana sem o caldo doce
Ser o carteiro que a carta não trouxe
Ser a encomenda que nunca chegou
Ser o diploma que não faz doutor

Fazer o traço sem ter a baliza
Falar o verbo que não verbalza
Obra prima que ficou no esboço
Uma girafa com nó no pescoço

É o sofrer de quem não tem
E é o ter e sofrer também
É traçar o círculo com esquadro
Assim sofre um ser apaixonado

Atrás da roupa a pele está pelada
Um olhar é porta escancarada
Pra quem vê é só dar uma olhada
Pra ver um amor que é posse mascarada

O giz escreve e depois se acaba
Brinquedo novo, em breve, vira tralha
Só pra queimar serve o pavil
Paixão eterna ninguém nunca viu

Mas não é raro conhecer o amor
É só parar e ver a flor
O amor floresce bem ali
Na paz de quem se esqueceu de si

24/03/2011

Um perdido de cabeça para baixo

Caminhando e farejando pela beira da estrada, percebi um sujeito dependurado de cabeça para baixo no galho de uma árvore. De cara sorridente e olhar perdido em algum lugar, parecia distraído com algum pensamento. Aproximei-me, sentei e abanei-lhe o rabo, aguardando o bocado do que ele estava esperando por compartilhar, já que ele tinha olhos de descoberta. Após algum tempo, ele se ajeitou no galho, tomou postura diante da platéia de arbustos, árvores, pedras e um vira-lata, e, então, soltou palavras como águas que estavam sendo represadas

"Estou me perdendo. Ando com a estranha sensação de que me falta explicação para andar, e por isso tenho andado mais leve, como se tivessem ficado pelo caminho os barris de água que costumava rolar por causa da grande sede que sentia."

"É, estou me perdendo. Como o esposo fiel e amoroso que só vê o futuro da sua vida e o propósito do viver presente enlaçados à vida da esposa amada, já não sei de mim, senão em função do universo, dos seres viventes, e das coisas que parecem não ter vida, como um tolo que se deixou levar pela lábia encantadora da natureza."

"Ao pé da árvore, à beira da corredeira, saboreando o fruto maduro, deitado na rocha esquentada pelo sol, os sentidos festejam a realidade, não por a estar conhecendo, mas relembrando. E a alma dá um sorriso lá dentro, ao reencontrar a velha amiga."

"E ao me perder assim, sem controle do que se passa, sendo um passageiro da carruagem da existência, a impressão é de estar descobrindo o segredo que os poetas morreram tentando encontrar, mas que é uma bobagenzinha de nada que fica ali, debaixo do pé de manga, na ponte sobre o rio, no voo da borboleta azul."

"Muitos vivemos da grandeza, que não é grandeza, mas inchaço. Vivemos de tesouros encontrados, entre tesouros deixados por aqueles que morreram infelizes."

"Então... me perdendo para a vida, achando graça em existir, vivo das pequenas coisas, embora não sejam pequenas. Uma onda só bate na praia, porque existe um oceano inteiro."

06/08/2009

Um quase-poema de despedida

É chegada a hora desse vira-lata aqui caçar outro rumo para além dessa cidade. Nem parto, nem morte, a jornada que se inicia é só um passo na dobra da esquina. Ia-se para um lado, agora se vai para outro... não é tanto uma mudança, talvez a escolha de um caminho que pareça torto, mas vem do entendimento de que o outro lado que se escolheu vai ser parte do lado que foi deixado. E assim sigo. Para aqueles que ficam, gostaria de dar um poema de despedida, mas um vira-lata que não é poeta, não pode fazer poesia. Não que ser vira-lata é o essencial do que sou, e poeta o essencial do que quero ser. Mas à parte dessa natureza que determina as coisas facilmente perceptíveis, sou algo que não importa definir, sou algo para além de mim, de que não posso falar porque ainda não conheci. Então, mais importante do que sou, é com o que quero me fundir para deixar de ser o que minha condição costuma dizer que sou. E nesse limiar, um vira-lata que vai deixando de ser vira-lata, mas que certamente poeta não é, diz assim...
O poeta que não é poeta
se põe a pensar na vida
atrás da palavra certa
para a hora da despedida
Ele revira seus sentimentos
e aqueles que são são seus
em busca dos ornamentos
que vão enfeitar seu adeus
Mas como sua boca é seca
e como a palava lhe falta
prefere que a boca emudeça
para poder falar da alma
Se não há palavra certa
o poema não se sustenta
e o poeta que não é poeta
faz um poema que não é poema
O que vai dizer o aperto de um abraço
na mesma medida e maneira
nunca vi usar só aço
para fazer casa de madeira
O poeta se silencia
deixa seu miolo escondido
para não fazer da poesia
um profundo mal-entendido
Assim ele se despede
poeta que não é poeta não
que desistiu do poema que não mede
o imensurável do coração
E se acaso o poeta chora
esse poeta que não sou eu
cada pingo é uma palavra
que ele nunca escreveu...
....
se acaso o poeta chora
depois de tudo que falou
cada pingo é uma não-palavra
que talvez seja o próprio amor

28/07/2009

Momento auto-ajuda

Um vira-lata pode aprender muitas coisas. Aprendendo muitas coisas consigo descobrir para o que sou apto e para o que sou inapto. Tornei-me inapto para muitos dos afazeres da cidade, isso é verdade. Mas sabendo para o que me tornei inapto, consigo imaginar as aptidões necessárias para quem quer assumir esses afazeres. Então, quando vejo esse monte de gente querendo se casar, penso no que eles deveriam estar fazendo para poderem ser bons maridos e esposas. Percebo que tem sido tempos difíceis para algumas das mulheres que buscam um companheiro. Não que elas me revelem isso – elas não perderiam tempo se confessando a um vira-lata – é que isso é uma coisa que transparece até no andar de algumas mulheres. Entre os homens, são poucos que percebo desejarem o mesmo. É certo que muitos dos homens desejam se casar, mas eles não parecem estar com muita pressa, ao contrário das mulheres que, já chegando à casa dos trinta anos, parecem querer remediar a situação na última hora. Há também aquelas que já encontraram um parceiro, mas andam meio amuadas e receosas com o futuro de seus relacionamentos. Se um dia uma dessas mulheres viesse me pedir conselhos, coisa que, obviamente nunca vai acontecer, eu diria assim:


Pequenos conselhos para as mulheres que desejam se tornar esposas


Não sonhe com os homens, qualquer um pode notar a ansiedade daquela que espera por um esposo, e muitos homens sabem tirar proveito dessa ansiedade. Busque a auto-realização, então se acaso um esposo aparecer, ele somará a sua vida, ao invés de ser apenas o recheio de uma lacuna.


Fique bonita, mas não tente esconder a todo custo suas imperfeições. Fazendo isso, além de revelar sua insegurança, atrairá a atenção justamente para o que você está tentando esconder. Lembre-se que a curiosidade é pelo desconhecido. Jamais tente equilibrar suas imperfeições apontando as imperfeições do outro, esse é um hábito das crianças mimadas. É claro que as mulheres muito bonitas têm mais opções de escolha. Mas ter variadas opções, ter diversos homens interessados em você, é um convite à soberba. Ser agraciada com uma beleza generosa é uma oportunidade para a superação dela própria. Use-a como um obstáculo a se transpor para ir além e descobrir coisas mais preciosas em seu interior. Se você confiar à beleza seu sucesso com os homens, em breve vai se ver rodeada de torturantes tratamentos estéticos que não têm fim; e quando sua beleza se for com o passar do tempo, você vai se ver obrigada a se submeter a deformantes cirurgias plásticas que a tornarão ridícula. Aprenda a valorizar as rugas. Só quem não evolui em sabedoria detesta as rugas. Mais importante que se achar bonita é, simplesmente, achar-se.


Frases como “com licença”, “me desculpa”, “por favor” e “obrigado” são mais importantes que “amo você”, “você está linda” ou “não vivo sem você”. Qualquer tolo é capaz de viver uma paixão, mas não é qualquer um que sabe viver com humildade e respeito. Virtudes como estas serão mais importantes que exaltações apaixonadas quando os anos pesarem sobre o casamento.


Um homem que tolera a mentira poderá viver uma mentira com você. Fique atenta, mas não faça testes tolos para saber se ele é sincero. A verdade aflora com a água da nascente de um rio: clara e silenciosa.


A paixão é um bom motivador para a união de casais, por outro lado, o fim da paixão é um bom motivador para a separação. Depender da paixão para se realizar implica, invariavelmente, numa troca incessante de parceiros. Para o matrimônio, o amor, que se constrói, é mais importante que a paixão, que se desvanece. Esqueça o passado do relacionamento dizendo “antes era melhor” ou “antes era mais intenso”, tudo que é fruto da paixão, por natureza, é efêmero. Busque a felicidade do relacionamento em uma construção fundada em sentimentos mais sutis, e não nos excessos da paixão que nunca mais vão voltar. Mantendo acesa a chama da paixão também se mantém a sombra do engano. Se sua busca é por um relacionamento sólido e duradouro, troque as coisas efêmeras pelas coisas perenes, troque a paixão pelo amor.


Aprenda a cozinhar, não como um lazer, mas como uma disciplina, como uma arte. Aprenda a ser responsável pelo o que vai estar na mesa do seu lar. O alimento é uma poderosa medicina que, muito provavelmente, vai estar em suas mãos, caso você se case. Assim também, aprenda os afazeres do lar. Muitos de sua geração se tornaram displicentes com os cuidados que devem ser dedicados ao lar. Não adianta recorrer a discursos feministas como “os homens precisam também assumir as tarefas de casa!”, sinceramente, na cidade, nem as mulheres estão aprendendo a fazer isso. Saber fazer dinheiro, saber economia e política, saber de pintura e música, conhecer “A crítica da razão pura” de Kant, nunca serão mais importantes do que saber se uma fruta está boa ou não para comer.


Acenda uma vela para Santo Antonio se você tem fé que isso vai ajudar . Uma biblioteca pode ser mais confiável do que as noitadas para se encontrar alguém. Uma oração é mais confiável que as duas juntas.


Aprenda a deleitar os ouvidos do outro, mas isso é bem diferente de ser tagarela. Aperceba-se de sua fala, de suas entonações, do momento e do ambiente. Aprender a usar a fala será importante para resolver os inevitáveis conflitos de um relacionamento. Mais importante que tudo isso, é entender a importância do silêncio.

As intenções e as expectativas atrapalham a comunicação com o outro, tente esquecê-las. Vá a lugares onde você não precisa ir armada para conquista, como uma feira internacional de gibis. Não fique matutando sobre um possível relacionamento futuro, se não, quando você encontrar um parceiro, ele já virá sobrecarregado com todas suas expectativas. O mesmo se aplica aos seus possíveis futuros filhos.


Lembre-se que você não veio ao mundo para satisfazer um homem, muito menos para satisfazer os outros mostrando a eles que você é capaz de satisfazer um homem. Aprenda a superar o desejo de se tornar uma esposa e a superar o medo de não se tornar uma esposa. Com disciplina se controla o alimento dos sonhos.


Eu vim ao mundo como vira-lata, essa é minha condição, mas não meu cárcere. Sua condição de mulher também não é um cárcere, você não está presa aos estereótipos e signos de identificação feminina. Transcenda! E a satisfação de sua condição de mulher se tornará algo secundário.

24/06/2009

Mais um propósito

Se eu escrevo um poema
Se sujo o papel com tinta
Não é porque sei da beleza
Ou saiba reproduzi-la

O poema é um entendimento
Que se mostrou impossível
O impossibilitamento
Que mostrou entendível